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Michael Laitman

A Liberdade


“‘Harut [gravado] nas tábuas’; não o pronunciem como ‘Harut’ [gravado], mas sim ‘Herut’ [liberdade], para mostrar que foram libertados do anjo da morte.” [Shemot Rabbah 41]
Estas palavras precisam de ser esclarecidas, pois de que forma é que o assunto da aceitação da Torá, está relacionado com a libertação da morte? Além disso, uma vez que tinham alcançado um corpo eterno que não pode morrer através da aceitação da Torá, como o perderam novamente? Pode algo eterno tornar-se ausente?

Liberdade de Escolha
Para compreender o conceito sublime de “liberdade do anjo da morte”, devemos primeiro entender o conceito de liberdade tal como é normalmente percebido por toda a humanidade.
É uma ideia generalizada que a liberdade é considerada uma lei natural, aplicável a toda a vida. Assim, vemos que os animais que caem em cativeiro morrem, quando lhes roubamos a liberdade. Este é um testemunho verdadeiro de que a Providência não aceita a escravização de nenhuma criatura. É com justa razão que a humanidade tem lutado nos últimos séculos para alcançar um certo nível de liberdade individual.
Contudo, este conceito, expresso na palavra “liberdade,” permanece pouco claro, e se aprofundarmos o significado dessa palavra, não restará quase nada, pois antes de procurar a liberdade do indivíduo, é necessário presumir que qualquer indivíduo, por si só, possui essa qualidade chamada de “liberdade,” ou seja, que pode agir de acordo com a sua escolha e a sua própria vontade.

Prazer e Dor
No entanto, quando examinamos os actos de um indivíduo, verificamos que são compelidos. Ele é forçado a realizá-los e não tem liberdade de escolha. De certo modo, é como um ensopado a cozinhar no fogão; não tem alternativa senão cozinhar, pois a Providência prendeu a vida com duas correntes: prazer e dor.
Os seres vivos não têm liberdade de escolha para escolher a dor ou rejeitar o prazer. A vantagem do homem sobre os animais é que ele pode ansiar por um objetivo distante, ou seja, aceitar uma certa quantidade de dor no presente, escolhendo um benefício ou prazer futuro, que será alcançado após algum tempo.
Mas, na verdade, não há aqui mais do que um cálculo aparentemente comercial, onde o benefício ou prazer futuro parece preferível e vantajoso em comparação com o sofrimento causado pela dor que aceitou suportar no presente. Trata-se apenas de uma dedução—onde se deduz a dor e o sofrimento do prazer esperado, restando um certo excedente.
Assim, apenas o prazer é extraído. E acontece, por vezes, que nos atormentamos porque o prazer recebido não corresponde ao excedente que esperávamos em relação ao sofrimento suportado. Por conseguinte, ficamos em défice, tal como acontece aos comerciantes.
Quando tudo está dito e feito, não há diferença entre o homem e o animal. E, se é assim, não existe liberdade de escolha alguma, mas apenas uma força que nos atrai para qualquer prazer passageiro e nos afasta em circunstâncias dolorosas. A Providência conduz-nos para onde deseja, utilizando estas duas forças, sem pedir a nossa opinião.
Além disso, até a determinação do tipo de prazer e benefício está totalmente fora da nossa liberdade de escolha, mas segue a vontade dos outros, tal como eles querem, e não a nossa. Por exemplo: sentamo-nos, vestimo-nos, falamos e comemos. Não fazemos tudo isto porque nos queremos sentar assim, ou falar assim, ou vestir assim, ou comer assim, mas porque os outros querem que o façamos dessa forma. Tudo segue o desejo e o gosto da sociedade, e não a nossa própria escolha.
Além disso, na maioria dos casos, fazemos tudo isto contra a nossa vontade. Seria mais confortável comportarmo-nos de forma simples, sem qualquer fardo. "Contudo, estamos acorrentados com grilhões de ferro, em todos os nossos movimentos, aos gostos e modos dos outros que constituem a sociedade."
Então, digam-me, onde está a nossa liberdade de escolha? Por outro lado, se assumirmos que o desejo não tem liberdade e que somos todos como máquinas que operam e criam através de forças externas que as obrigam a agir desta forma, isso significa que estamos todos encarcerados na prisão da Providência, que, usando estas duas correntes—prazer e dor—nos empurra-nos e puxa-nos para onde acha adequado, conforme a sua vontade.
Conclui-se que não existe tal coisa como egoísmo no mundo, uma vez que ninguém aqui é livre ou atua por conta própria. Não somos donos dos nossos atos nem o fazemos porque queremos fazê-lo. Pelo contrário, é porque somos manipulados contra a nossa vontade e sem o nosso entendimento. Assim, recompensa e o castigo extinguem-se.
E isto é bastante estranho, não só para os religiosos, que acreditam na Sua Providência e podem confiar n’ Ele, acreditando que Ele visa apenas o melhor com esta conduta. É ainda mais estranho para aqueles que acreditam na natureza, pois, segundo o que foi dito acima, estamos todos presos pelas correntes de uma natureza cega, sem consciência nem responsabilidade. E nós, a espécie eleita, dotada de razão e conhecimento, tornamo-nos um brinquedo nas mãos da natureza cega, que nos desencaminha, sabe-se lá para onde?

A Lei da Causalidade
Vale a pena dedicar algum tempo a compreender algo tão importante, ou seja, como existimos no mundo como seres com um "eu", em que cada um de nós se considera uma entidade única, agindo por conta própria, independentemente de fatores externos, estranhos, e forças desconhecidas, e como este ser – o eu – se nos revela.
É verdade que existe uma conexão geral entre todos os elementos da realidade diante de nós, progredindo continuamente, que obedece à lei da causalidade, pelo princípio de causa e efeito. E tal como acontece com o todo, também acontece com cada elemento em si mesmo, ou seja, cada criatura no mundo, seja ela do tipo inanimado, vegetativo, animal ou falante, obedece à lei da causalidade pelo princípio de causa e efeito.
Além disso, cada forma particular de uma conduta específica que uma criatura segue enquanto está neste mundo é impulsionada por causas antigas, que a obrigam a fazer essa mudança específica de comportamento e nenhuma outra. Isto é evidente para todos os que examinam os caminhos da natureza de um ponto de vista puramente científico e sem qualquer mistura de preconceito. De facto, é necessário analisar esta questão para permitir que ela seja examinada de todos os ângulos.

Quatro Fatores
Convém notar que cada manifestação que acontece nos seres do mundo deve ser entendida não como algo que surge do nada, mas como algo que surge de algo existente, através de uma entidade real que abandonou a sua forma anterior e revestiu a forma atual.
Portanto, devemos compreender que, em cada ocorrência no mundo, existem quatro fatores que, juntos, dão origem a essa ocorrência. São eles:

  1. A Origem.
  2. A conduta imutável de causa e efeito relacionada com o próprio atributo da Origem.
  3. As suas condutas internas de causa e efeito que mudam pelo contacto com forças externas.
  4. As condutas de causa e efeito de elementos externos que a afetam do exterior.

Serão esclarecidos um de cada vez.

A Primeira Razão: A Origem, a Primeira Matéria
A) A "origem" é a primeira matéria, relacionada com esse ser. Pois “não há nada de novo debaixo do sol,” e tudo o que acontece no nosso mundo não é “existência a partir da ausência” [iesh me ein], mas sim “existência a partir da existência" [iesh me iesh]. Trata-se de uma entidade que abandonou a sua forma anterior e assumiu outra forma, diferente da inicial. E essa entidade, que se despojou da sua forma prévia, é definida como “a origem.” Nela reside o potencial destinado a ser revelado e determinado no final da formação desse surgimento. Assim, é claramente considerada a sua causa primária.

A Segunda Razão: Causa e Efeito Derivados de Si Mesma
B) Trata-se de uma conduta de causa e efeito relacionada com o atributo próprio da origem, que é imutável. Por exemplo, consideremos um grão de trigo que apodrece na terra e chega a um estado de gerar muitos grãos de trigo. Assim, esse estado de decomposição é considerado a “origem”, e isto significa que a essência do trigo se despojou da sua forma anterior, a forma de trigo, e assumiu uma nova qualidade, a de trigo decomposto, que é a semente chamada “origem,” sem qualquer forma definida. Agora, após apodrecer na terra, tornou-se apta para revestir outra forma, a de muitos grãos de trigo, destinada a surgir daquela origem, que é a semente.
É sabido que esta origem nunca se vai tornar cevada nem aveia, apenas vai equiparar-se à sua forma anterior, que a abandonou, sendo o único grão de trigo. Embora mude até certo ponto em qualidade e quantidade, pois na forma anterior era um único grão e agora existem dez grãos, e também no sabor e na aparência, a essência da forma do trigo permanece inalterada.
Portanto, aqui há uma conduta de causa e efeito atribuída ao atributo próprio da origem, que nunca muda. Assim, a cevada nunca vai surgir do trigo, como dissemos, e isso é chamado de “a segunda razão.”

A Terceira Razão: Causa e Efeito Internos
C) Esta é a conduta de causa e efeito internos da origem, que se altera ao encontrar forças externas no seu ambiente. Assim, verificamos que, a partir de um único grão de trigo que apodrece na terra, muitos grãos surgem, por vezes maiores e de melhor qualidade do que antes da sementeira.
Portanto, devem existir fatores adicionais aqui, colaborando e conectando-se com a força oculta no ambiente, ou seja, a “origem.” E, por causa disso, as adições em qualidade e quantidade, que estavam ausentes na forma anterior do trigo, apareceram agora. São os minerais e os materiais do solo, a chuva e o sol. Todos estes atuam sobre ele, transmitindo as suas forças e unindo-se à força presente na própria origem. E, através da conduta de causa e efeito, produziram a multiplicidade em quantidade e qualidade nesse surgimento.
Devemos entender que este terceiro fator se une à interioridade da origem, já que a força oculta na origem os controla. No final, todas estas mudanças pertencem ao trigo e a nenhuma outra planta. Por isso, definimo-los como fatores internos. Contudo, diferem do segundo fator, que é completamente imutável, enquanto o terceiro fator muda em qualidade e quantidade.

A Quarta Razão: Causa e Efeito através de Elementos Externos
D) Esta é a conduta de causa e efeito de elementos externos que atuam sobre ele a partir do exterior. Ou seja, não têm uma relação direta com o trigo, como os minerais, a chuva ou o sol, mas são-lhe alheios, como coisas próximas ou acontecimentos externos, como granizo, vento, etc.
E constatamos que os quatro fatores combinam-se com o trigo durante todo o seu crescimento. Cada estado particular a que o trigo está sujeito durante esse tempo torna-se condicionado por estes quatro fatores, e a qualidade e quantidade de cada estado é determinada por eles.
Assim como descrevemos no trigo, esta é a regra em cada surgimento no mundo, até mesmo em pensamentos e ideias. Se, por exemplo, imaginarmos um estado conceptual numa certa pessoa, como o estado de alguém ser religioso ou não, ou extremamente ortodoxo, ou menos extremista, ou intermédio, compreenderemos que esse estado foi estabelecido nessa pessoa pelos quatro fatores acima mencionados.


Posses Hereditárias
A causa da primeira razão é a origem, que é a sua substância primordial. O homem foi criado de “existência a partir da existência" [iesh me iesh], ou seja, a partir do intelecto dos seus progenitores. Assim, até certo ponto, ele é como uma replicação de livro para livro. Isto significa que quase todas as questões que foram aceites e alcançadas nos antepassados são também replicadas aqui.
Mas a diferença é que elas estão numa forma abstracta, como o trigo semeado que não está apto para semear até que tenha apodrecido e perdido a sua forma anterior. O mesmo acontece com a gota de esperma da qual o homem nasce: Não há nada nela das formas dos seus antepassados, apenas força abstracta.
Pois as mesmas ideias que eram conceitos nos seus patriarcas transformaram-se em meras tendências nele, chamadas de "instintos" ou "hábitos", sem saber sequer por que razão fazemos o que fazemos. Na verdade, são forças ocultas que ele herdou dos seus antepassados de forma que não só as posses materiais nos chegam por herança dos nossos antepassados, mas também as posses espirituais e todos os conceitos em que os nossos pais se empenharam chegam até nós por herança de geração em geração.
Destas surgem as múltiplas tendências que encontramos nas pessoas, como a tendência para acreditar ou para criticar, a tendência para se contentar com a vida material ou desejar apenas a integridade espiritual e moral, desprezando uma vida sem valor, sendo avaro, submisso, insolente ou tímido.
Todas estas imagens que aparecem nas pessoas não são a sua propriedade, que tenham adquirido, mas a mera herança que lhes foi dada pelos seus antepassados. Sabemos que há um lugar especial no cérebro humano onde estes patrimónios hereditários residem. Chama-se "o cérebro alongado", ou "subconsciente", e todas as tendências aparecem lá.
Mas, porque os conceitos dos nossos antepassados, adquiridos através das suas experiências, se transformaram em meras tendências em nós, são considerados como o trigo semeado, que perdeu a sua forma anterior e ficou despojado, com apenas forças potenciais aptas a receber novas formas. Na nossa substância, essas tendências revestem as formas de conceitos. Isto é considerado a primeira matéria, e este é o factor primário, chamado "origem". Nela residem todas as forças das tendências únicas que ele herdou dos seus progenitores, que são definidas como "herança ancestral".
Tenha em consideração que algumas dessas tendências surgem de forma negativa, ou seja, como o oposto das que estavam nos antepassados. É por isso que disseram: "Tudo o que está oculto no coração do pai emerge abertamente no filho."
A razão para isto é que a origem perde a sua forma anterior para assumir uma nova forma. Assim, está próxima de perder as formas dos conceitos dos antepassados, como o trigo que apodrece no solo perde a forma que existia no trigo. No entanto, ainda depende dos outros três factores, como escrevi acima.

Influência do Ambiente
A segunda razão é uma conduta imutável, direta, de causa e efeito, relacionada com o próprio atributo da origem. Ou seja, como esclarecemos com o trigo que apodrece no solo, o ambiente em que a origem repousa, como o solo, os minerais, a chuva, o ar e o sol, afecta a sementeira através de uma longa cadeia de causa e efeito, num processo longo e gradual, de estado para estado, até que amadurece.
E essa origem retoma a sua forma anterior, a forma do trigo, mas diferenciando-se em qualidade e quantidade. No seu aspecto geral, permanecem completamente inalteradas; assim, nenhum grão ou aveia vai crescer a partir delas. Mas no seu aspecto particular, mudam em quantidade, pois de uma espiga surgem uma dúzia ou duas dúzias de espigas, e em qualidade, pois são melhores ou piores do que a forma anterior do trigo.
É o mesmo aqui: O homem, enquanto "origem", é colocado num ambiente, ou seja, na sociedade. Ele é necessariamente afetado por ela, tal como o trigo o é pelo seu ambiente, pois a origem é apenas uma forma bruta. Assim, através do contacto constante com o ambiente circundante e a sociedade, ele é gradualmente impressionado por eles, através de uma cadeia de estados consecutivos, um após o outro, como causa e efeito.
Nesse momento, as tendências incluídas na sua origem mudam e assumem a forma de conceitos. Por exemplo, se alguém herda dos seus antepassados uma tendência para a avareza, à medida que cresce, constrói para si conceitos e ideias que concluem de forma decisiva que é bom para uma pessoa ser avara. Assim, embora o seu pai fosse generoso, ele pode herdar dele a tendência negativa—ser avaro—pois a ausência é tanto herança quanto a presença.
Ou, se alguém herda dos seus antepassados uma tendência para ser de mente aberta, constrói para si conceitos e tira deles conclusões, de que é bom para uma pessoa ser de mente aberta. Mas onde encontra essas frases e raciocínios? Ele tira tudo isto do ambiente de forma inconsciente, pois este transmite-lhe as suas opiniões e gostos através de um processo de causa e efeito gradual.
Assim, o homem considera-os como sua própria posse, como se os tivesse adquirido através do seu pensamento livre. Mas aqui, também, como no trigo, há uma parte imutável da origem, que é que, no final, as tendências que ele herdou permanecem como estavam nos seus antepassados. Isto é chamado de "o segundo factor".

O Hábito Torna-se uma Segunda Natureza
A terceira razão refere-se a uma conduta de causa e efeito direto, que afeta a origem e a altera. Como as tendências herdadas no homem se transformaram em conceitos devido ao ambiente circundante, estas operam nas mesmas direções definidas por esses conceitos. Por exemplo, um homem de natureza frugal, em quem a tendência à avareza foi convertida em conceito, através do ambiente, percebe a frugalidade através de alguma definição razoável.
Suponhamos que, através dessa conduta, ele se protege de depender de outras pessoas. Assim, adquiriu uma escala para a frugalidade, e quando esse medo estiver ausente, pode abdicar dela. Conclui-se que mudou substancialmente para melhor em relação à tendência que herdara dos seus antepassados. Por vezes, consegue-se até erradicar completamente uma tendência negativa. Isto é alcançado pelo hábito, que tem a capacidade de se transformar numa segunda natureza.
Nisso, a força do homem é superior à de uma planta, pois o trigo só pode mudar na sua própria parte, enquanto o homem tem a capacidade de mudar através da causa e efeito do ambiente, mesmo nas partes gerais, ou seja, pode erradicar completamente uma tendência e invertê-la para o seu oposto.

Fatores Externos
A quarta razão refere-se a uma conduta de causa e efeito que afeta a origem através de elementos totalmente alheios a ela, e opera sobre ela a partir do exterior. Isto significa que esses elementos não estão de forma alguma relacionados com o processo de crescimento da origem para a afetar diretamente. Em vez disso, operam de forma indireta. Por exemplo, as questões financeiras, os encargos ou os ventos, entre outros, seguem a sua própria ordem de estados lenta e gradual, através de "causa e efeito", que alteram os conceitos do homem para melhor ou para pior.
Assim, estabeleci os quatro fatores naturais que explicam que cada pensamento e ideia que surge em nós são apenas os seus frutos. Mesmo que alguém se dedique a contemplar algo durante todo o dia, não será capaz de adicionar ou alterar o que esses quatro fatores lhe proporcionam. Qualquer acréscimo que se possa fazer será apenas em quantidade: quer seja um intelecto elevado ou modesto. Contudo na qualidade não consegue acrescentar nada. Isto deve-se ao facto de serem esses fatores que determinam de forma compulsiva a natureza e a forma da ideia e da conclusão, contra a nossa vontade, sem pedir a nossa opinião. Assim, estamos nas mãos destes quatro fatores, como o barro nas mãos do oleiro.

Livre-Arbítrio
No entanto, ao examinarmos estes quatro fatores, verificamos que, embora a nossa força não seja suficiente para enfrentar o primeiro fator, a origem, temos ainda assim a capacidade e o livre-arbítrio para nos protegermos dos outros três fatores, pelos quais a origem muda nas suas partes individuais e, por vezes, até na sua parte geral, através do hábito, que lhe confere uma segunda natureza, como explicado anteriormente.

O Ambiente como Fator
Essa proteção significa que podemos sempre fazer escolhas no que diz respeito ao ambiente que nos rodeia, como os amigos, os livros, os professores, e assim por diante. É como uma pessoa que herdou algumas espigas de trigo do seu pai. Com esta pequena quantidade, ela pode cultivar muitas dezenas de espigas através da escolha do ambiente para a sua origem, que é um solo fértil contendo todos os minerais e matérias-primas necessários para nutrir o trigo abundantemente.
Há também a questão do trabalho de melhorar as condições do ambiente para se ajustarem às necessidades da planta e do crescimento, pois o sábio fará bem em escolher as melhores condições e terá sucesso. Já o insensato vai aceitar o que lhe surgir pela frente e, assim, transformará a sementeira numa maldição ao invés de uma bênção.
Assim, todo o louvor e espírito dependem da escolha do ambiente no qual se semeia o trigo. Contudo, uma vez semeado no local selecionado, a forma definitiva do trigo é determinada de acordo com a medida em que o ambiente é capaz de providenciar.
O mesmo acontece com o nosso tema, pois é verdade que o desejo não tem liberdade. Pelo contrário, é operado pelos quatro fatores mencionados anteriormente. E uma pessoa é compelida a pensar e a examinar conforme esses fatores sugerem, privados de qualquer força para criticar ou mudar, tal como o trigo semeado no seu ambiente.
No entanto, existe liberdade para que a vontade, inicialmente, escolha tal ambiente, tais livros e tais guias que lhe transmitam bons conceitos. Se alguém não o faz, mas se dispõe a entrar em qualquer ambiente que lhe surja ou a ler qualquer livro que lhe caia nas mãos, vai acabar inevitavelmente por cair num ambiente nocivo ou desperdiçar o seu tempo com livros inúteis, que são abundantes e mais acessíveis. Consequentemente, será levado a conceitos errados que o farão pecar e condenar-se. Certamente será punido, não pelos seus pensamentos ou atos maus, nos quais não tem escolha, mas porque não escolheu estar num bom ambiente, pois nisso existe, sem dúvida, uma escolha.
Portanto, aquele que se esforça continuamente por escolher um ambiente melhor é digno de louvor e recompensa. Mas também aqui, não pelo mérito dos seus bons pensamentos ou atos, que lhe surgem sem a sua escolha, mas pelo esforço em adquirir um bom ambiente, que lhe proporciona esses bons pensamentos e ações. Como disse o Rabi Yehoshua Ben Perachya: “Faz para ti um Rav e compra para ti um amigo.”

A Necessidade de Escolher um Bom Ambiente
Agora podemos compreender as palavras do Rabi Yosi Ben Kisma (Avot, Capítulo 6), que respondeu a uma pessoa que lhe ofereceu em troca de viver na sua cidade, milhões de moedas de ouro: “Mesmo que me dês todo o ouro, prata e joias do mundo, eu só viverei num lugar de Torá.” Estas palavras parecem inconcebíveis ao nosso intelecto limitado, pois como poderia ele renunciar a milhões de moedas de ouro por algo aparentemente tão pequeno como viver num lugar onde não há discípulos de Torá, sendo ele próprio um grande sábio que não precisava aprender de ninguém? De facto, um mistério.
Mas, como vimos, é algo simples e que deve ser observado por cada um de nós. Embora cada pessoa tenha a sua própria origem, as forças revelam-se abertamente apenas através do ambiente em que se encontra. À semelhança do trigo semeado no solo, cujas forças se tornam evidentes apenas através do ambiente, que inclui o solo, a chuva e a luz do sol.
Assim, o Rabino Yosi Ben Kisma assumiu corretamente que, se deixasse o bom ambiente que escolhera e caísse num ambiente prejudicial numa cidade sem Torá, não só os seus conceitos anteriores seriam comprometidos, mas todas as outras forças ocultas na sua origem, que ainda não revelara em ação, permaneceriam escondidas. Isto porque não estariam sujeitas ao ambiente certo, capaz de as ativar.
E, como esclarecemos acima, só na escolha do ambiente se mede a soberania do homem sobre si mesmo, e por isso ele deve receber recompensa ou castigo. Por conseguinte, não devemos estranhar que um sábio como o Rabino Yosi Ben Kisma tenha escolhido o bem e recusado o mal, não se deixando seduzir por coisas materiais ou corpóreas, como ele próprio deduz: “Quando se morre, não se leva consigo prata, ouro ou joias, mas apenas a Torá e as boas ações.”
Assim, os nossos sábios advertiram: “Faz para ti um Rav e compra para ti um amigo.” E há também a escolha dos livros, como mencionámos, pois apenas nisso alguém é repreendido ou elogiado — na sua escolha do ambiente. Mas, uma vez escolhido o ambiente, a pessoa encontra-se nas suas mãos, como o barro nas mãos do oleiro.

O Controlo do intelecto sobre o Corpo
Alguns sábios contemporâneos, ao contemplarem esta questão e perceberem que o intelecto humano não é mais do que um fruto que cresce a partir dos acontecimentos da vida, concluíram que o intelecto não tem qualquer controlo sobre o corpo. Pelo contrário, apenas os acontecimentos da vida, gravados nos tendões físicos do cérebro, controlam e ativam o homem. O intelecto humano é como um espelho que reflete as formas à sua frente. Embora o espelho seja portador dessas formas, não pode ativar ou mover as formas nele refletidas.
Assim é o intelecto. Apesar de os acontecimentos da vida, em todas as suas formas de causa e efeito, serem vistos e reconhecidos pela mente, esta é completamente incapaz de controlar o corpo, de o colocar em movimento, ou seja, de o aproximar do bem ou afastá-lo do mal. Isto porque o espiritual e o físico estão totalmente distantes um do outro, e não existe um dispositivo intermédio que permita ao intelecto espiritual ativar e operar o corpo físico, como já foi amplamente discutido.
Mas, onde há sabedoria, há inquietação. A imaginação do homem utiliza o intelecto assim como o microscópio serve os olhos: sem o microscópio, não veríamos nada prejudicial devido à sua pequenez. Mas, ao ver o elemento nocivo através do microscópio, afastamo-nos dele.
Assim, é o microscópio que leva o homem a afastar-se do perigo, e não o senso, pois este não detetou o causador do dano. E, nesse sentido, o intelecto controla completamente o corpo do homem, afastando-o do mal e aproximando-o do bem. Assim, em todas as situações em que o corpo falha em reconhecer o que é benéfico ou prejudicial, precisa apenas do entendimento do intelecto.
Além disso, dado que o homem conhece o seu intelecto, que é um verdadeiro resultado dos acontecimentos da vida, pode, assim, receber conhecimento e compreensão de uma pessoa de confiança e aceitá-los como lei, mesmo que os acontecimentos da sua vida ainda não lhe tenham revelado esses conceitos. É como uma pessoa que pede o conselho de um médico e o segue, mesmo que nada entenda por si própria. Assim, utilizamos a mente dos outros tanto quanto utilizamos a nossa.
Como já esclarecemos, existem duas formas de a Providência assegurar que o homem alcance o bem, o objetivo final: o caminho do sofrimento e o caminho da Torá. Toda a clareza no caminho da Torá deriva disto. Pois estas conceções claras, que foram reveladas e reconhecidas após uma longa cadeia de acontecimentos na vida dos profetas e homens de Deus, permitem a um homem utilizá-las plenamente e beneficiar delas, como se fossem acontecimentos da sua própria vida. Assim, vemos que alguém é poupado a todas as provações que teria de enfrentar para desenvolver essa conclusão clara por si próprio. Assim, poupa-se tempo e sofrimento.
Isto pode ser comparado a um doente que se recusa a seguir as ordens do médico antes de compreender por si próprio como é que esses conselhos o vão curar, começando, por isso, a estudar medicina por conta própria. Ele pode morrer da sua doença antes de aprender medicina.
O mesmo se passa com o caminho do sofrimento em comparação com o caminho da Torá. Aquele que não acredita nos conceitos que a Torá e a profecia lhe aconselham a aceitar sem autocompreensão deve chegar a esses conceitos por si mesmo, seguindo a cadeia de causa e efeito dos acontecimentos da vida. Estas experiências aceleram grandemente e podem desenvolver o sentido de reconhecimento do mal nelas, como vimos, sem livre escolha, mas por causa dos esforços para adquirir um bom ambiente, que conduza a esses pensamentos e ações.

A Liberdade do Indivíduo
Agora chegámos a uma compreensão completa e precisa da liberdade do indivíduo. Contudo, isto relaciona-se apenas com o fator primário, a origem, que é a substância inicial de cada pessoa, ou seja, todas as características que herdamos dos nossos pais e antepassados e que nos diferenciam uns dos outros.
Isto porque, mesmo quando milhares de pessoas partilham o mesmo ambiente, de tal forma que os outros três fatores as afetam de forma igual, não se encontram duas pessoas que partilhem sequer um único atributo. Isto porque cada uma tem a sua própria e única origem. É como a origem do trigo: embora mude significativamente pelos três últimos fatores, mantém ainda a forma preliminar de trigo e nunca vai assumir a forma de outra espécie.


A Forma Geral do Progenitor Nunca Se Perde
Assim, cada “origem” que abandonou a forma preliminar do progenitor e assumiu uma nova forma como resultado dos três fatores que foram acrescentados e que a alteraram significativamente, mantém, ainda assim, a forma geral do progenitor. Esta nunca vai assumir a forma de outra pessoa que lhe seja semelhante, tal como a aveia nunca se vai assemelhar ao trigo.
Isto deve-se ao facto de que cada origem possui uma sequência longa de gerações, composta por várias centenas de gerações, e a origem inclui os conceitos de todas elas. No entanto, estes não se revelam nela da mesma forma como surgiram nos antepassados, ou seja, sob a forma de ideias, mas apenas como formas abstratas. Assim, existem nele enquanto forças abstratas, designadas por “tendências,” “natureza” e “instintos,” sem que haja conhecimento do motivo ou razão para as suas ações. Desta forma, nunca poderá haver duas pessoas com o mesmo atributo.


A Necessidade de Preservar a Liberdade do Indivíduo
Saiba que esta é a única posse verdadeira do indivíduo, que não deve ser prejudicada ou alterada. Isto porque o objetivo final de todas essas tendências, incluídas na origem, é materializar-se e assumir a forma de conceitos quando o indivíduo cresce e adquire conhecimento, como resultado da lei da evolução que governa essa cadeia e a impulsiona constantemente para a frente, como explicado no artigo “A Paz.” Aprendemos também que cada tendência está destinada a transformar-se num conceito sublime e de importância imensurável.
Assim, quem elimina uma tendência de um indivíduo e a extirpa causa a perda desse conceito sublime e maravilhoso, destinado a surgir no final da cadeia, pois tal tendência nunca mais surgirá em qualquer outro corpo. Por conseguinte, devemos compreender que, quando uma tendência específica assume a forma de um conceito, já não pode ser distinguida como boa ou má. Estas distinções são reconhecidas apenas enquanto ainda são tendências ou conceitos imaturos e de modo algum quando assumem a forma de conceitos reais, como será detalhadamente explicado nos ensaios seguintes.
Do que foi dito acima, aprendemos que terrível erro infligem aquelas nações que impõem o seu domínio sobre minorias, privando-as de liberdade e impedindo-as de viver de acordo com as tendências que herdaram dos seus antepassados. Estas nações são consideradas nada menos do que assassinas.
Mesmo aqueles que não acreditam em religião ou numa orientação com propósito podem compreender a necessidade de preservar a liberdade do indivíduo, observando os sistemas da natureza. Vemos como todas as nações que alguma vez caíram, ao longo das gerações, o fizeram devido à opressão de minorias e indivíduos, que, por isso, se rebelaram e as arruinaram. É, portanto, claro para todos que a paz não pode existir no mundo a menos que consideremos a liberdade do indivíduo. Sem ela, a paz não será sustentável, e a ruína vai prevalecer.
Assim, definimos claramente a essência do indivíduo com a máxima precisão, após a dedução de tudo o que ele retira do público. Contudo, agora enfrentamos uma questão: “Onde está, afinal, o próprio indivíduo?” Tudo o que dissemos até agora sobre o indivíduo é percebido apenas como propriedade herdada dos seus antepassados. Mas onde está o indivíduo propriamente dito, o herdeiro e portador dessa propriedade, que exige a proteção do seu património?
De tudo o que foi dito até aqui, ainda não identificamos o ponto do "eu" no homem, que se apresenta como uma unidade independente. E por que precisamos do primeiro fator, que é uma longa cadeia de milhares de pessoas, sucessivas, de geração em geração, com a qual estabelecemos a imagem do indivíduo como herdeiro? E por que precisamos dos outros três fatores, que são os milhares de pessoas contemporâneas? No fim, cada indivíduo não passa de uma máquina pública, sempre pronta a servir o público conforme este determine.
Ou seja, ele tornou-se subordinado a dois tipos de público: do ponto de vista do primeiro fator, tornou-se subordinado a um grande público das gerações passadas, alinhadas uma após a outra; do ponto de vista dos três outros fatores, tornou-se subordinado ao seu público contemporâneo.
Esta é, de facto, uma questão universal. Por esta razão, muitos se opõem ao método natural acima exposto. Embora conheçam profundamente a sua validade, escolhem, em vez disso, métodos metafísicos, dualistas ou transcendentalistas para se representarem num objeto espiritual que habita no corpo, como a alma do homem. Essa alma seria o que ensina e opera o corpo, constituindo a essência e o “eu” do homem.
Talvez estas interpretações possam tranquilizar a mente, mas o problema é que elas não possuem solução científica para explicar como um objeto espiritual pode ter contacto com os átomos físicos do corpo para o colocar em movimento. Toda a sua sabedoria e investigação não os ajudaram a encontrar uma ponte suficiente para cruzar o vasto e profundo fosso entre a entidade espiritual e o átomo corpóreo. Assim, a ciência não ganhou nada com todos esses métodos metafísicos.


O Desejo de Receber—”Existência a Partir da Ausência” [iesh me ein]
Para avançarmos um passo em frente de forma científica, precisamos apenas da sabedoria da Cabala. Isto porque todas as ciências e ensinamentos do mundo estão incluídos na sabedoria da Cabala. No que diz respeito às luzes e aos vasos espirituais (no comentário da Árvore da Vida, Ramo 1), aprendemos que a principal inovação, do ponto de vista da criação, que Ele criou como ”Existência a Partir da Ausência” [iesh me ein], aplica-se a um único aspeto, definido como o “desejo de receber.” Todas as outras substâncias em toda a criação não são de todo inovações; não são ”Existência a Partir da Ausência” [iesh me ein], mas sim “existência a partir da existência”[iesh me iesh]. Isto significa que elas derivam diretamente da Sua essência, tal como a luz que se estende do sol. Também aí não há novidade, uma vez que o que se encontra no núcleo do sol se projeta para o exterior.
No entanto, o desejo de receber é uma inovação completa. Antes da criação, não existia tal coisa na realidade, uma vez que Ele não possui a qualidade do desejo de receber, pois antecede tudo... então, de quem receberia Ele?
Por esta razão, este desejo de receber, que Ele extraiu como ”Existência a Partir da Ausência” [iesh me ein], é uma inovação completa. Mas tudo o resto não é considerado uma inovação que se possa chamar de “criação.” Assim, todos os vasos e corpos, tanto dos mundos espirituais como dos mundos físicos, são considerados substância espiritual ou corpórea cuja natureza é desejar receber.


Duas Forças no Desejo de Receber: Uma Força Atrativa e uma Força Repulsiva
É necessário discernir ainda, que distinguimos duas forças nessa força chamada “desejo de receber”:
1) A força de atração.
2) A força repulsão.
A razão prende-se com o facto de que cada corpo ou vaso, definido como o desejo de receber, ser limitado, ou seja, limitado na quantidade e qualidade do que pode receber. Por conseguinte, toda a quantidade e qualidade que estão fora dos seus limites parecem estar contra a sua própria natureza; daí que as rejeite. Assim, esse “desejo de receber”, embora seja considerado uma força de atração, é obrigada a tornar-se também uma força de repulsão.


Uma Lei para Todos os Mundos
Embora a sabedoria da Cabala não mencione nada sobre o nosso mundo corpóreo, ainda assim, há somente uma única lei para todos os mundos (como está escrito no artigo “A Essência da Sabedoria da Cabala”, na secção “A Lei da Raiz e do Ramo”). Assim, todas as entidades corpóreas do nosso mundo, ou seja, tudo o que está dentro deste espaço, seja inanimado, vegetativo, animal, objeto espiritual ou objeto corpóreo, se quisermos distinguir o ser único de cada uma delas, como diferem umas das outras, mesmo na menor partícula, resume-se apenas a esse “desejo de receber”. Esta é toda a sua forma particular, do ponto de vista da criação gerada, limitando-a em quantidade e qualidade. Como resultado, existe nela uma força de atração e uma força de rejeição.
No entanto, tudo o que existe nela além destas duas forças é considerado como a abundância proveniente da Sua essência. Essa abundância é igual para todas as criaturas e não apresenta qualquer inovação em relação à criação, pois expande-se como “existência a partir da existência”[iesh me iesh].
Também não pode ser atribuída a nenhuma unidade em particular, mas apenas às coisas que são comuns a todas as partes da criação, pequenas ou grandes. Cada uma delas recebe dessa abundância conforme o limite do seu desejo de receber, e é esse limite que define cada indivíduo e unidade.
Assim, provei de forma evidente — de uma perspetiva puramente científica — o eu (ego) de cada indivíduo através de um método científico e completamente à prova de críticas, mesmo segundo o sistema dos fanáticos materialistas automáticos. A partir de agora, não precisamos mais desses métodos frágeis impregnados de metafísica.
E, naturalmente, não faz diferença se esta força do desejo de receber é um resultado e fruto da matéria que a produziu através da química, ou se a matéria é um resultado e fruto dessa força. Isto porque sabemos que o principal é que apenas esta força, impressa em cada ser e átomo do desejo de receber, dentro dos seus limites, é a unidade pela ele qual se separa e distingue do seu ambiente. Isto aplica-se tanto a um único átomo como a um grupo de átomos, denominado “corpo”.
Todas os outros discernimentos que excedem essa força não estão de forma alguma relacionados com essa partícula ou grupo de partículas, no que diz respeito a si mesmos, mas apenas no que diz respeito ao todo, que é a abundância que expande do Criador, comum a todas as partes da criação em conjunto, sem distinção de corpos criados específicos.
Agora compreendemos a questão da liberdade do indivíduo, de acordo com a definição do primeiro fator, que denominamos de “origem”, onde todas as gerações anteriores, que são os pais e antepassados desse indivíduo, imprimiram a sua natureza. Como esclarecemos, o significado da palavra “indivíduo” resume-se aos limites do desejo de receber, impressos no seu grupo de moléculas.
Assim, vemos que todas as tendências herdadas dos seus antepassados não são mais do que limites do seu desejo de receber, relacionadas ou com a sua força de atração, ou com a força de rejeição, que nos aparecem como tendências à avareza ou à generosidade, uma tendência para socializar ou ser eremita, e assim por diante.
Por esta razão, essas tendências são verdadeiramente o seu eu (ego), lutando pela sua existência. Assim, se erradicarmos até mesmo uma única tendência desse indivíduo, seremos considerados como se estivéssemos a cortar um órgão verdadeiro da sua essência. É também considerado uma perda genuína para toda a criação, já que não há outro igual, nem haverá alguém como ele em todo o mundo.
Depois de termos esclarecido a fundo o direito legítimo do indivíduo segundo as leis naturais, vejamos como é prático, sem comprometer a teoria da ética e da governação. E, mais importante: como este direito é aplicado pela nossa sagrada Torá.

Seguir o Coletivo
As escrituras dizem: “Segue o coletivo.” Isto significa que, sempre que haja uma disputa entre o coletivo e o indivíduo, somos obrigados a decidir de acordo com o desejo do coletivo. Assim, vemos que o coletivo tem o direito de expropriar a liberdade do indivíduo.
Contudo, deparamo-nos aqui com uma questão ainda mais grave do que a anterior. Parece que esta lei faz a humanidade regredir ao invés de avançar. Isto porque, enquanto que a maior parte da humanidade está subdesenvolvida, e os desenvolvidos são sempre uma pequena minoria, se a decisão for sempre determinada pelo desejo da maioria que são os subdesenvolvidos e imprudentes, as opiniões e os desejos dos sábios e desenvolvidos na sociedade, que são sempre a minoria, nunca serão ouvidos nem levados em consideração. Assim, o destino da humanidade fica selado na regressão, incapaz de dar sequer um único passo em frente.
No entanto, conforme explicado no artigo “A Paz,” na secção “Necessidade de Praticar Cautela com as Leis da Natureza,” dado que somos ordenados pela Providência a levar uma vida social, tornamo-nos obrigados a observar todas as leis relativas à manutenção da sociedade. E, se formos negligentes, ainda que ligeiramente, a natureza vai vingar-se em nós, independentemente de compreendermos ou não as razões dessas leis.
Podemos constatar que não existe outra forma de organização para viver em sociedade para além de seguir a lei de “Seguir o coletivo,” que põe em ordem todas as disputas e tribulações sociais. Assim, esta lei é o único instrumento que confere sustentabilidade à sociedade. Por essa razão, é considerada uma das Mitzvot [mandamentos] naturais da Providência, e devemos aceitá-la e mantê-la meticulosamente, independentemente da nossa compreensão.
Isto é semelhante às restantes Mitzvot da Torá: todas elas são leis da natureza e da Sua Providência que nos chegam de cima para baixo. Já descrevi (“A Essência da Sabedoria da Cabala,” “A Lei da Raiz e do Ramo”) como toda a realidade que se manifesta na natureza deste mundo existe apenas porque deriva de leis e condutas dos mundos espirituais superiores.
Agora podemos compreender que as Mitzvot da Torá não são senão leis e condutas estabelecidas nos mundos superiores, que são as raízes de todas as condutas da natureza neste nosso mundo. Por conseguinte, as leis da Torá coincidem sempre com as leis da natureza neste mundo, como duas gotas de água. Assim, provamos que a lei “Seguir o coletivo” é uma lei da Providência e da natureza.

Um Caminho de Torá e um Caminho de Sofrimento
Ainda assim, a nossa questão sobre a regressão, que surgiu desta lei, não está resolvida através destas palavras. De facto, esta é a nossa preocupação — encontrar formas de corrigir isto. Porém, a Providência, em si, não perde com isso, pois faz evoluir a humanidade de duas formas — o “caminho da Torá” e o “caminho do sofrimento” — de modo a garantir o seu desenvolvimento e progresso contínuos em direção ao objetivo, sem qualquer reserva (“A Paz”, “Tudo Está em Depósito”). De facto, obedecer a esta lei é um compromisso natural e necessário.
O Direito do Coletivo de Expropriar a Liberdade do Indivíduo
Devemos questionar ainda mais profundamente: as coisas são justificadas quando se trata de questões entre pessoas. Nesses casos, podemos aceitar a lei de “Seguir o Coletivo” através da obrigação imposta pela Providência, que nos instrui zelar sempre pelo bem-estar e felicidade dos seus membros. Mas a Torá obriga-nos a seguir a lei de “Seguir o Coletivo” também em disputas entre o homem e o Criador, ainda que estas questões pareçam completamente irrelevantes à existência da sociedade.
Portanto, a questão persiste: como podemos justificar essa lei, que nos obriga a aceitar as opiniões da maioria — que, como dissemos, é subdesenvolvida — e a rejeitar e anular as opiniões dos desenvolvidos, que são sempre uma pequena minoria?
Como mostramos no segundo tratado (“A Essência da Religião e o Seu Propósito”, “Desenvolvimento Consciente e Desenvolvimento Inconsciente”), a Torá e as Mitzvot foram dadas apenas para purificar Israel, desenvolvendo em nós o reconhecimento do mal que nos é inerente desde o nascimento, geralmente definido como amor-próprio, e conduzir-nos ao bem puro, definido como “amor ao próximo”, que é a única passagem para o amor ao Criador.
Assim, as Mitzvot entre o homem e o Criador são consideradas ferramentas que afastam o homem do amor-próprio, que é prejudicial para a sociedade. É, portanto, evidente que os temas de disputa relativos às Mitzvot entre o homem e o Criador se relacionam com o problema da sustentabilidade da sociedade. Consequentemente, estes também se enquadram no âmbito da lei de “Seguir o Coletivo”.
Agora podemos compreender a distinção entre Halachah [lei judaica] e Agadah [lendas]. Isto porque apenas nas Halachot [plural de Halachah] se aplica a lei de que “individual e coletivo, Halachah (a lei) como o coletivo”. O mesmo não se aplica à Agadah, uma vez que os assuntos abordados na Agadah estão acima das questões que dizem respeito à existência da sociedade, pois falam especificamente da conduta das pessoas em questões que envolvem o homem e o Criador, naquilo que não afeta a existência e a felicidade física da sociedade.
Portanto, não há justificação para o coletivo anular a opinião do indivíduo, e “cada homem fará aquilo que é justo aos seus próprios olhos”. No entanto, quanto às Halachot que tratam da observância das Mitzvot da Torá, todas estão sob a supervisão da sociedade, uma vez que não pode haver nenhuma ordem senão através da lei de “Seguir o Coletivo”.

Para a Vida Social, a Lei: Seguir o Coletivo
Agora chegámos a uma compreensão clara da questão relativa à liberdade do indivíduo. De facto, surge uma pergunta: de onde é que o coletivo retirou o direito de expropriar a liberdade do indivíduo e privá-lo daquilo que há de mais precioso na vida — a liberdade? À primeira vista, não parece haver aqui mais do que pura força bruta.
Mas, como já explicamos acima de forma clara, trata-se de uma lei natural e de um decreto da Providência. E porque a Providência nos obriga a todos a viver em sociedade, acontece que cada pessoa tem o dever de assegurar a existência e o bem-estar da sociedade. E isso só pode ser feito através da imposição da conduta de “seguir o coletivo”, ignorando a opinião do indivíduo.
Assim, é evidente que esta é a origem de todo o direito e justificação que o coletivo tem para expropriar a liberdade do indivíduo, contra a sua vontade, e colocá-lo sob a sua autoridade. Por conseguinte, compreende-se que, no que diz respeito a todas as questões que não dizem respeito à existência da vida material da sociedade, não há qualquer justificação para que o coletivo prive e abuse da liberdade do indivíduo de qualquer forma. Se o fizer, é considerado um ladrão, que prefere a força bruta a qualquer direito ou justiça no mundo, pois, nesses casos, não se aplica a obrigação do indivíduo de obedecer à vontade do coletivo.

Na Vida Espiritual, Seguir o Indivíduo
Conclui-se que, no que toca à vida espiritual, não existe qualquer obrigação natural para que o indivíduo se submeta à sociedade. Pelo contrário, aqui aplica-se uma lei natural ao coletivo, que deve submeter-se ao indivíduo. No artigo “A Paz” é clarificado que a Providência nos envolveu e cercou de duas maneiras para nos conduzir ao objetivo final: um caminho de sofrimento, que nos desenvolve de forma inconsciente, e um caminho de Torá e sabedoria, que nos desenvolve de forma consciente, sem dor nem coação.
Como o mais desenvolvido numa geração é certamente o indivíduo, conclui-se que, quando o público deseja livrar-se do terrível sofrimento e assumir um desenvolvimento consciente e voluntário, que é o caminho da Torá, não tem outra opção senão submeter-se e renunciar à sua liberdade física em favor da disciplina do indivíduo, obedecendo às orientações e soluções que este lhes oferecer.
Deste modo, vemos que, no domínio espiritual, a autoridade do coletivo é anulada e aplica-se a lei de seguir o indivíduo, ou seja, o indivíduo desenvolvido. É evidente que os mais desenvolvidos e instruídos em qualquer sociedade constituem sempre uma pequena minoria. Assim, o sucesso e o bem-estar espiritual da sociedade dependem exclusivamente dessa minoria.
Portanto, o coletivo está obrigado a manter cuidadosamente todas as opiniões dessa minoria, para que não se percam do mundo. Isto porque devem ter a certeza absoluta de que as opiniões mais verdadeiras e desenvolvidas nunca estão nas mãos do coletivo que detém a autoridade, mas sim nas mãos dos mais fracos, ou seja, da minoria pouco visível. Isto deve-se ao facto de que toda a sabedoria e tudo o que é precioso surge no mundo em pequenas quantidades. Por essa razão, somos advertidos a preservar as opiniões de todos os indivíduos, dado que o coletivo não tem a capacidade de as distinguir corretamente.

A Crítica Traz Sucesso; a Falta de Crítica Causa Decadência
Devemos ainda acrescentar que a realidade apresenta aos nossos olhos uma oposição extrema entre assuntos físicos e conceitos e ideias, relativamente ao tema acima referido pois a questão da unidade social, que pode ser a fonte de toda a alegria e sucesso, aplica-se particularmente aos corpos e às questões materiais das pessoas, enquanto a separação entre elas é a origem de todas as calamidades e infortúnios.
Contudo, no que toca a conceitos e ideias, a situação é completamente oposta: a unidade e a ausência de crítica são consideradas a origem de todos os fracassos e obstáculos ao progresso e à fertilização intelectual. Isto porque a formulação de conclusões corretas depende particularmente do aumento de divergências e da separação entre opiniões. Quanto mais contradições houver entre as opiniões e quanto maior for a crítica, mais vão aumentar o conhecimento e a sabedoria, tornando os assuntos mais aptos à análise e clarificação.
A decadência e o fracasso da inteligência resultam apenas da ausência de crítica e de divergência. Assim, é evidente que toda a base do sucesso físico reside na medida da união da sociedade, enquanto que a base do sucesso da inteligência e do conhecimento depende da separação e do desacordo entre as opiniões.
Conclui-se, então, que quando a humanidade alcançar o seu objetivo em relação ao bem-estar físico, ao elevar-se ao nível de amor pleno ao próximo, todos os corpos do mundo vão unir-se num único corpo e num único coração, conforme está escrito no artigo “A Paz.” Só então toda a felicidade destinada à humanidade vai revelar-se em toda a sua glória. Mas, paralelamente, devemos estar atentos para não aproximar em demasia as opiniões das pessoas, ao ponto de extinguir a discordância e a crítica entre os sábios e estudiosos, pois o amor ao corpo traz consigo, de forma natural, uma proximidade de opiniões. Se a crítica e o desacordo desaparecerem, todo o progresso em conceitos e ideias vai cessar também, e a fonte do conhecimento no mundo vai secar.
Esta é a prova da obrigação de zelar pela liberdade do indivíduo no que toca a conceitos e ideias. Todo o desenvolvimento da sabedoria e do conhecimento assenta nessa liberdade individual. Por isso, somos advertidos a preservá-la cuidadosamente, de modo a que cada forma existente em nós, a que chamamos “indivíduo” — ou seja, a força particular de cada pessoa, geralmente designada por “desejo de receber” — seja protegida.


Herança Ancestral
Todos os detalhes das características que este desejo de receber inclui, que definimos como a origem ou a causa primária, cujo significado inclui todas as tendências e costumes herdados dos seus antepassados, que imaginamos como uma longa cadeia de milhares de pessoas que viveram no passado e que se encontram, figurativamente, sobrepostas. Cada uma delas constitui uma gota essencial dos seus progenitores, e essa gota transmite a cada pessoa todos os bens espirituais dos seus ascendentes, depositados no cérebro alongado, denominado “subconsciente.” Assim, o indivíduo que temos diante de nós possui, no seu subconsciente, milhares de legados espirituais provenientes de todos os indivíduos representados nessa cadeia, que são os seus progenitores e antepassados.
Portanto, assim como o rosto de cada pessoa é único, também as suas opiniões diferem. Não existem duas pessoas na Terra com opiniões idênticas, pois cada uma possui um património sublime e valioso que lhe foi transmitido pelos seus antepassados, do qual os outros não possuem qualquer parcela.
Por conseguinte, todos esses bens são considerados propriedade do indivíduo, e a sociedade deve cuidar de preservar o seu carácter e espírito, de modo a que não se diluam no ambiente. Pelo contrário, cada indivíduo deve manter intacta a sua herança. Assim, a contradição e a oposição entre eles vão permanecer para sempre, garantindo eternamente a crítica e o progresso da sabedoria, que constitui a verdadeira vantagem e o desejo eterno da humanidade.
Depois de alcançarmos uma certa medida de reconhecimento do egoísmo humano, que determinamos como uma força e um desejo de receber, sendo o ponto essencial do ser em estado natural, também se tornou claro para nós de forma plena, sob todos os aspetos, o património original de cada corpo, que definimos como “herança ancestral.” Isto diz respeito a todas as tendências e qualidades potenciais que lhe foram transmitidas pela hereditariedade, sendo a substância inicial de cada pessoa, ou seja, a semente primordial dos seus antepassados.
Agora, encontrámos a porta para compreender a intenção dos nossos sábios nas suas palavras de que, ao receberem a Torá, foram libertados do anjo da morte. Contudo, ainda precisamos de uma compreensão mais profunda acerca do egoísmo e da referida herança ancestral.


Dois Discernimentos: A) Potencial, B) Real
Primeiramente, devemos compreender que, embora este egoísmo, que definimos como a força do desejo de receber, constitua a própria essência do homem, ele não pode existir na realidade nem por um segundo. (Pois é sabido que há uma distinção entre “potencial” e “real”, sendo que o que chamamos de “potencial” se refere ao pensamento, antes de passar do potencial ao real, e só se estabelece no pensamento.) Assim, aquilo a que chamamos “potencial,” antes de se manifestar como real, existe apenas no pensamento, ou seja, só podemos defini-lo intelectualmente.
No entanto, de facto, não pode existir nenhuma força real no mundo que permaneça inativa e latente. Isto porque a força só existe na realidade quando se manifesta na ação. Da mesma forma, não se pode dizer de um bebé que é muito forte, quando não consegue levantar nem o peso mais leve. Ao invés, podemos afirmar que, ao observar o bebé, percebemos que, ao crescer, ele poderá manifestar uma grande força.
Todavia, dizemos que essa força que encontramos no homem adulto já estava presente nos seus órgãos e no seu corpo quando era um bebé, mas estava oculta e não se manifestava. É verdade que no nosso intelecto podemos determinar (as forças que estão destinadas a manifestar-se), pois o intelecto reconhece esse potencial. No entanto, no corpo real do bebé, certamente não está revelada a força, já que esta não se revela nas suas ações.
O mesmo acontece com o apetite. Esta força não se manifesta no corpo de um homem, de fato, quando os órgãos não conseguem comer, ou seja, quando ele está saciado. No entanto, mesmo estando saciado, a força do apetite existe, mas permanece oculta no corpo. Após algum tempo, quando a comida é digerida, essa força reaparece e manifesta-se, passando do potencial ao real.
Contudo, tal afirmação (da determinação de uma força ainda não revelada na realidade) pertence ao domínio das condutas percebidas pelo pensamento, mas não existe efetivamente na realidade, pois, quando estamos saciados, sentimos claramente que a força do apetite desapareceu, e, se a procurarmos, não a vamos encontrar.
Conclui-se, portanto, que não podemos apresentar o potencial como um sujeito que existe por si só, mas apenas como um atributo. Assim, quando acontece uma ação na realidade, a força manifesta-se nessa ação.
Ainda assim, encontramos necessariamente dois elementos no processo de percepção: um sujeito e um atributo, ou seja, o potencial e o real, como a força do apetite (o sujeito) e a imagem da comida (o atributo ou a ação). Na realidade, contudo, surgem como uma unidade. Nunca vai acontecer que a força do apetite se manifeste numa pessoa sem que ela visualize o alimento que deseja consumir. Assim, são duas metades do mesmo todo. A força do apetite deve revestir-se na imagem do objeto a ser consumido, pois só se revela quando revestida numa imagem. Como se pode ver, o sujeito e o atributo são apresentados como duas partes de um todo, cuja aparecimento e desaparecimento são simultâneos.
Podemos compreender agora que o desejo de receber, que apresentamos como egoísmo, não significa que exista numa pessoa como uma força que deseja receber como um atributo passivo. Pelo contrário, isto relaciona-se com o sujeito, ou seja, reveste-se da imagem de objetos que este considera dignos de serem recebidos. É como a força do apetite, que se reveste na imagem de algo digno de ser consumido, cuja ação se manifesta sob a forma do objeto a consumir no qual se reveste. Chamamos a esta ação “desejo,” ou seja, a força do apetite revelada na ação da imaginação.
O mesmo acontece com o nosso tema — o desejo geral de receber, que constitui a essência do homem. Ele só aparece e existe ao revestir-se em formas de objetos suscetíveis de serem recebidos; assim, manifesta-se como sujeito e de nenhuma outra forma. Chamamos a esta ação “vida,” ou seja, a vitalidade do homem, que consiste na força do desejo de receber que se reveste e atua nos objetos desejados. E a medida da revelação desta ação é a medida da sua vitalidade, conforme explicamos na ação que designamos como “desejo.”

Duas Criações: A) Homem, B) Alma Viva
Pelo exposto acima, podemos compreender claramente o versículo: “E o Senhor Deus formou o homem do pó da terra, e soprou nas suas narinas o fôlego da vida; e o homem tornou-se uma alma [Nefesh] viva [Haya].” Aqui encontramos duas criações:

  1. O homem em si mesmo,
  2. A alma viva em si mesma.

O versículo diz que, no princípio, o homem foi criado como pó da terra, uma coleção de moléculas onde reside a essência do homem, ou seja, o seu desejo de receber. Essa força, o desejo de receber, está presente em todos os elementos da realidade, conforme explicamos acima. Além disso, dela emergiram os quatro tipos: 1) inanimado, 2) vegetativo, 3) animal, 4) falante.
Nesse aspeto, o homem não tem qualquer vantagem sobre as demais partes da criação. Este é o significado do versículo nas palavras: “pó da terra.”
Contudo, já vimos que essa força, chamada “desejo de receber,” não pode existir sem se revestir e agir num objeto desejado, e essa ação é chamada de “vida.” E, consequentemente, verificamos que antes do homem alcançar as formas humanas de receção de prazer, que diferem das dos outros seres criados, ele ainda é considerado uma pessoa inanimada, morta, pois o seu desejo de receber não tem onde se revestir e manifestar as suas ações, que são as manifestações da vida.
Este é o significado do versículo: “e soprou nas suas narinas o fôlego da vida,” que é a forma geral de receção adequada aos humanos. A palavra Nishmat [fôlego de] deriva da palavra Samin [colocando] a base para ele, que equivale a “valor.” (E a origem da palavra “fôlego” é entendida a partir do versículo (Job 33:4): “O espírito de Deus fez-me, e o fôlego do Todo-Poderoso deu-me vida,” e veja o comentário do MALBIM lá.) A palavra “alma” [Neshama] tem a mesma estrutura sintática que as palavras, “faltando” [Nifkad], “acusado” [Ne’esham], e “acusada” [Ne’eshama—termo feminino de Ne’esham].
E o significado das palavras, “e soprou nas suas narinas” é que Ele insere uma alma [Neshama] no seu interior e uma apreciação da vida, que é o somatório das formas que são dignas de receção no seu desejo de receber. Então, essa força, o desejo de receber, encerrada nas suas moléculas, encontrou um lugar onde se revestir e agir, ou seja, naquelas formas de receção que obteve do Criador. E esta ação é chamada de “vida,” conforme explicamos acima.
E o versículo termina: “e o homem tornou-se uma alma viva.” Isto significa que, assim que o desejo de receber começou a agir pelas medidas daquelas formas de receção, a vida manifestou-se instantaneamente nele e ele “tornou-se uma alma viva.” No entanto, antes de alcançar essas formas de receção, embora a força do desejo de receber já estivesse inscrita nele, ainda é considerado um corpo sem vida, pois não tem onde se manifestar e agir.
Como vimos acima, embora a essência do homem seja apenas o desejo de receber, ela é ainda considerada como a metade de um todo, pois precisa revestir-se de uma realidade que lhe surge. Por essa razão, ela e a imagem da posse que descreve são literalmente uma só, já que, de outra forma, não poderia existir nem por um momento.
Assim, quando a máquina do corpo atinge o seu auge, ou seja, até a meia-idade, o ego do homem permanece erguido em toda a altura que lhe foi impressa ao nascer. Por isso, sente em si uma medida grande e poderosa do desejo de receber. Ou seja, deseja intensamente grande riqueza e honra, e tudo o que lhe é acessível. Isto acontece devido à perfeição do ego humano, que atrai formas de estruturas e conceitos que ele reveste e pelos quais se sustenta.
Mas, quando metade da vida está concluída, começam os dias do declínio. Pelo seu conteúdo, estes são os seus dias de morte. Uma pessoa não morre num instante, assim como não recebe a vida num instante. Pelo contrário, a sua chama, que é o ego, enfraquece e apaga-se pouco a pouco, e com ela desaparecem as imagens das posses que almejava receber.
Começa a renunciar a muitos bens com os quais tinha sonhado na juventude e, gradualmente, abandona grandes posses à medida que declina com os anos. Finalmente, nos seus verdadeiros dias de velhice, quando a sombra da morte paira sobre todo o seu ser, encontra-se em "tempos sem apelo", pois o seu desejo de receber, o ego, já definhou. Resta apenas uma pequena centelha, oculta aos olhos, sem se revestir em qualquer posse. Assim, não há apelo ou esperança nesses dias para qualquer imagem de receção.
Portanto, provamos que o desejo de receber, juntamente com a imagem do objeto esperado, são uma e a mesma coisa. A sua manifestação é igual, a sua estatura é igual, e o mesmo se aplica também à duração.
Contudo, existe aqui uma distinção significativa na forma de renúncia nos tempos do declínio da vida. Essa renúncia não é fruto de saciedade, como alguém que abdica de comida quando está satisfeito, mas de desespero. Ou seja, quando o ego começa a morrer durante os dias do declínio, percebe a sua própria fraqueza e a morte iminentes. Por isso, a pessoa abre mão e desiste dos sonhos e esperanças da juventude.
Observe atentamente a diferença entre isso e a renúncia por saciedade, que não causa tristeza e não pode ser chamada de "morte parcial," mas que se assemelha a um trabalhador que completou a sua obra. De facto, a renúncia por desespero está repleta de dor e sofrimento e pode, portanto, ser chamada de "morte parcial".


Liberdade do Anjo da Morte
Agora, depois de tudo o que aprendemos, encontramos uma forma de compreender verdadeiramente as palavras dos nossos sábios quando disseram: “‘Harut [gravado] nas pedras,’ não pronunciem Harut [gravado] , mas sim Herut [liberdade], pois foram libertados do anjo da morte.”
Nos artigos “Matan Torah” e “A Arvut,” foi explicado que, antes da entrega da Torá, eles tinham assumido a renúncia a qualquer propriedade privada, até ao ponto expresso nas palavras “um reino de sacerdotes” e no propósito de toda a criação—aderir a Ele em equivalência de forma com Ele: assim como Ele doa e não recebe, também eles vão doar e não receber. Este é o último nível de Dvekut [adesão], expresso nas palavras “uma nação sagrada”, conforme escrito no final do artigo “A Arvut.”
Já expliquei que a essência do homem, ou seja, o seu egoísmo, definido como o desejo de receber, é apenas metade de algo e só pode existir quando revestido por alguma imagem de posse ou esperança de posse. Só então o nosso ser se completa e pode ser chamado de “a essência do homem.”
Assim, quando os filhos de Israel foram recompensados com a Dvekut completa, naquela ocasião sagrada, os seus vasos de receção esvaziaram-se totalmente de qualquer posse mundana, e aderiram a Ele em equivalência de forma. Isto significa que não tinham qualquer desejo por posses próprias, a não ser na medida em que pudessem proporcionar contentamento para que o seu Criador se deleitasse com eles.
E, uma vez que o seu desejo de receber se revestiu na imagem desse objetivo, revestiu-se e fundiu-se com ele em completa unidade. Assim, foram certamente libertados do anjo da morte, pois a morte é, necessariamente, uma ausência e negação da existência de algo. Mas só enquanto houver uma centelha que deseja existir para o seu próprio prazer, é que se pode dizer que essa centelha não existe, pois se tornou ausente e morreu.
Contudo, se essa centelha não existir no homem, mas todas as centelhas do seu egoísmo se revestirem de doação de contentamento ao Criador, ele não se tornará ausente nem morrerá. Mesmo quando o corpo é anulado, é apenas anulado em relação à receção para benefício próprio, na qual o desejo de receber se reveste e só pode existir nela.
No entanto, quando o homem alcança o objetivo da criação e o Criador recebe prazer dele, uma vez que a Sua vontade é cumprida, à essência do homem, que se reveste no Seu contentamento, é concedida eternidade completa , tal como Ele. Assim, é recompensado com a liberdade do anjo da morte. Este é o significado das palavras da Midrash (Midrash Rabbah, Shemot, 41): “Liberdade do anjo da morte.” E na Mishná (Avot, Capítulo 6): “‘Harut [gravado] nas pedras; não pronunciem Harut [gravado], mas sim Herut [liberdade], pois ninguém é livre, a menos que se dedique ao estudo da Torá.’”