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Carta 55


1 de Kislev, Tav-Reish-Tzadi-Bet, 11 de Novembro de 1931, Jerusalem


Ao meu muito querido…  
Hoje recebi a sua carta com as novidades sobre os filhos, que o Criador lhes conceda a bênção.
De modo geral, tive algum contentamento com essa carta. Embora não tenha evitado por completo dar primazia às questões corpóreas também aqui, há ainda muito do essencial na escrita, como você próprio escreveu.
Quanto ao que diz, que estou zangado ou preocupado consigo por não me ter escrito nada nos últimos dois anos, é assim que se sente. A minha resposta é que, embora este sentimento não seja dececionante em geral, é dececionante na sua forma, pois o Criador sabe que nada de mau me pode alcançar daqueles que percebem o corpo. Como então, assim agora, eu sou o mesmo: “Ai desta beleza que murcha neste pó”, e daqui provêm todas as minhas alegrias e tristezas.
Após esta introdução, concederei o seu desejo. Escreveu: “Peço muito que me escreva algumas inovações na Torá.”
Devemos considerar cuidadosamente as palavras dos nossos sábios, cujas palavras são como brasas. Eles disseram: “Uma hora de arrependimento e boas ações neste mundo é melhor do que toda a vida do mundo vindouro, e uma hora de contentamento no mundo vindouro é melhor do que toda a vida deste mundo.” Parece que o início e o fim se contradizem, pois, ao determinarem que uma hora do mundo vindouro é melhor do que toda a vida deste mundo, devem estar a referir-se à vida espiritual neste mundo, ou seja, ao arrependimento e às boas ações. Afinal, não podemos suspeitar que a Mishna fale de uma vida de prazer imaginário, como é para os ímpios, os tolos e os insensíveis.
Os nossos sábios já nos instruíram: “Os ímpios, nas suas vidas, são chamados ‘mortos’.” Ou seja, a forma de vida a que os ímpios se podem assemelhar é, em si, a morte, o oposto da vida e da felicidade. Assim, a morte que os ímpios percebem, sendo a ausência do prazer percebido, é uma perceção falsa, pois a ausência de prazer corpóreo não é o oposto da vida, para merecer ser definida como morte.
Pelo contrário, a presença de prazeres corpóreos, que os ímpios receberam e com os quais se regozijam, é tecida para eles numa barreira de ferro que os separa da vida das vidas, e eles afundam-se no mundo da morte, como está escrito: “Ele é Satanás; ele é a inclinação para o mal; ele é o anjo da morte.”
Assim, é evidente que as palavras da Mishna, “a vida deste mundo”, indicam a vida espiritual neste mundo, pois as palavras dos sábios curam e não falarão falsidade.
Foi acerca disto que eles disseram: “Uma hora de contentamento neste mundo é melhor.” Assim, por que acrescentaram: “Uma hora de arrependimento e boas ações neste mundo é melhor do que toda a vida do mundo vindouro”? Não devemos insistir na parte em que o arrependimento e as boas ações requerem trabalho e paciência, pelos quais se distinguem da vida deste mundo. É por isso que disseram primeiro: “Uma hora de contentamento deste mundo” é melhor.
Contudo, o trabalho e o esforço desprovidos de prazer são melhores do que o prazer espiritual neste mundo, pois é ainda mais elevado do que toda a vida do mundo vindouro. Todavia, tais palavras são aceitáveis apenas entre aqueles com pouco conhecimento. Nunca serão aceites pelos sábios. Os nossos sábios já determinaram para nós no Zohar que “Onde há trabalho, há a Sitra Achra [outro lado], pois a Sitra Achra está em carência”, assim como todos os que a seguem. Mas em relação à Kedusha [santidade], há plenitude, e todos os que trabalham na Kedusha estão em plenitude, sem qualquer esforço, e apenas em deleites e felicidade.
Antes de nos aprofundarmos no cerne das suas palavras, definirei minuciosamente para si o significado destas palavras — “este mundo”, “o mundo vindouro” — nas palavras dos nossos sábios. Está apresentado no Zohar, no título Sefer HaBahir [O Livro Daquele que Brilha]: “Foi perguntado ao Rabino Rechimai, ‘O que é ‘o mundo vindouro’ e o que é ‘no futuro’?’ Ele respondeu-lhes, ‘No mundo vindouro e veio.’” Ou seja, a abundância ainda está por vir.
Pode claramente ver a diferença entre este mundo e o mundo vindouro. Este é o que alcançamos no presente ou alcançamos no passado. O mundo vindouro, porém, é o que ainda não alcançamos, mas que deveremos alcançar no futuro, após algum tempo. Contudo, ambos falam do que se alcança e recebe neste mundo, pois o significado da recompensa antecipada da alma é apresentado no Zohar mencionado acima, definido apenas nas palavras “no futuro”.
Ou seja, antes da correção, as pessoas neste mundo são completamente inadequadas para a receber, mas apenas as almas, que estão desprovidas de corpos, ou após o fim da correção, quando este mundo se eleva no grande mérito do mundo de Atzilut. Contudo, não devemos alongar-nos sobre isso por agora.
É dito: “Inicialmente, os nossos pais eram idólatras. Agora o Criador aproximou-nos do Seu trabalho, Tera, o pai de Abraão”, etc. Devemos compreender a intenção do autor com esta referência a Tera, o pai de Abraão. Será para nos lembrar dos melhores tempos, o tempo da nossa liberdade?
Mas encontramos algo semelhante na Torá, também, como está escrito: “E Tera morreu em Harã. E o Senhor disse a Abraão, ‘Sai da tua terra’”, etc. Esta proximidade é surpreendente e desconcertante, pois a primeira aparição do Criador ao primeiro pai, que é a raiz e o cerne de todo Israel, e toda a correção que contém toda a abundância e felicidade esperadas para nos serem reveladas, e a abundância nos mundos para todos os justos e profetas do princípio ao fim.
É assim porque a lei na Kedusha [santidade] e na espiritualidade é que a raiz contém em si toda a descendência que dela provém e se manifesta, como foi dito sobre Adam [Adão] HaRishon, que ele incluía todas as almas que apareceriam no mundo. Da mesma forma, o primogénito inclui todos os filhos nascidos depois dele, como é conhecido nos livros.
Assim, deveria haver uma separação em vários escritos entre o nome de Tera e a primeira aparição de Abraão, pois ele é a raiz de tudo, como dito acima.
Aqui devo explicar a base da idolatria. Como escrevem os livros sobre o versículo, “Não haverá deus alheio dentro de ti.” Significa que o Criador não deve ser para si como um estranho, pois trabalhar para um estranho é um fardo. É por isso que é idolatria [a tradução literal de idolatria é “trabalho alheio”]. Pelo contrário, adorar o Criador deve ser com amor e alegria, e então o seu lugar é na Kedusha, e não de outra forma.
Também se diz em nome do Baal Shem Tov, “Não terás outros deuses para além de Mim”, pois aquele que acredita que existem outras forças (para além de Mim) além da força do Criador, que é chamado Elokim [Deus], está a cometer idolatria, e isto é profundo.
É assim porque um servo do Criador não necessita de qualquer mudança na configuração corpórea. Está perfeita e maravilhosamente ordenado, como escrito no “Poema da Unificação”: “Não esqueceste nenhum dos Teus desejos, nem omitiste coisa alguma. Não subtraíste, nem acrescentaste, e não trabalhaste neles em vão.”
A configuração corpórea está ordenada de tal forma que todos as pessoas do mundo se unirão e serão qualificados para o Seu trabalho, como está escrito: “Todas as ações do Senhor são para Seu benefício.” Este é o significado de “Nunca houve alegria diante Dele como no dia em que o céu e a terra foram criados.” Também está escrito: “E Deus viu tudo o que tinha feito, e eis que era muito bom.”
Contudo, está ordenado de maneira adequada para tal trabalho, apropriado para a recompensa maravilhosa, que “Nem o olho viu um Deus para além de Ti.” Este é o significado do trabalho e da recompensa que estão estabelecidos diante de nós neste mundo, na corporeidade.
Vemos aqui que qualquer recompensa é proporcional à dor que o trabalhador sente durante o trabalho. Mas o conceito de esforço e sofrimento que aparecem durante o trabalho é avaliado e medido de acordo com o atraso do pagamento a partir do momento do esforço, pois é natural que o pagamento apague e erradique o sofrimento do esforço. Ou seja, não é percebido como tristeza, nem um pouco.
Pense por si próprio: Se troca uma vaca por um burro, então recebe o contentamento que sente com o burro, completamente igual à vaca. No mínimo, não é menos do que isso, ou não o trocaria pelo burro.
Da mesma forma, se o dono pagasse ao idólatra tais pagamentos e recompensas que não fossem satisfatórios para ele, pelo menos tanto quanto antes de trabalhar, é certo que ele não trocaria o seu trabalho pela recompensa. Afinal, a intenção do trabalhador é ganhar e receber contentamento através da troca, e não aumentar ainda mais a sua tristeza; isto é claro e simples para todos.
Na verdade, há exceções, mas isso refere-se à maioria das pessoas, pois o verdadeiro preço do trabalho é verdadeiro apenas na maioria das pessoas, não em indivíduos específicos.
Mas, apesar de tudo o que foi dito acima, o senso comum nega que, no final do dia, pareça que o corpo não faz cálculos racionais, e que sente o trabalho mais ou menos como uma dívida, e o pagamento não apaga a dor ardente presente do esforço.
Mas, na verdade, o cálculo é correto, pois o corpo não desfruta nem sofre pelo futuro, mas pelo presente. Portanto, se o dono pagasse ao trabalhador os seus pagamentos no presente, ou seja, momento a momento, onde por cada sensação ele lhe pagasse um cêntimo, não há dúvida de que ele não sentiria o seu esforço de forma alguma, pois os pagamentos apagariam e erradicariam a dor.
Mas o dono não fará isso. Pelo contrário, ele paga os seus pagamentos e a recompensa no final do trabalho, após um dia, uma semana ou um mês. É por isso que o corpo animal, que não desfruta nem sofre pelo futuro, sentirá dor e preocupação, pois realmente perde todo o seu esforço pela sensação animal.
Portanto o corpo que recebe os pagamentos não trabalhou de todo, e o corpo que trabalhou não recebeu nada por isso. É por isso que está separado, pois desfruta apenas do momento presente, e a sensação do futuro parece-lhe um corpo alheio.
Venha e veja: O comerciante, dono da loja, que realmente recebe o seu pagamento no presente, ou seja, por cada minuto que se esforça e sofre enquanto serve os clientes, realmente não sente o seu esforço de forma alguma. Pelo contrário, ele está encantado durante o pagamento. O esforço, que está ligado ao pagamento, é erradicado para ele. Ele não é como o trabalhador que recebe o seu salário ao fim do dia e sente infelicidade e tristeza durante o trabalho.
Foi isto que eu disse, que qualquer sensação de dor e sofrimento na realidade é apenas pela remoção do pagamento do tempo do trabalho. Além disso, se escrutinar mais, descobrirá que, de acordo com o intervalo de tempo entre eles, assim aumenta a dor durante o trabalho, tão exatamente igual como duas gotas de água idênticas.
Com o que foi dito acima, compreendemos os dois nomes, “justo” e “ímpio”, pois ninguém vive ocioso neste mundo; necessariamente temos algum sentido da razão para a nossa existência no mundo — para bênção ou, Deus nos livre, para maldição. Ou seja, a bênção que somos ordenados a oferecer ao Criador faz-se por si própria.
Da mesma forma, um rico que dá um presente a um pobre sabe com certeza que o pobre o abençoa por isso. Não precisa de prestar atenção ao que ele profere com a boca. Mas se a pessoa golpeia e amaldiçoa outra, sabe com certeza que o outro o está a amaldiçoar; não precisa de pensar nisso.
Assim, aquele que desfruta de estar no mundo do Criador, nesse momento está a abençoar o seu Criador, que o criou para o deleitar. Ele mal precisa de proferir algo.
Inversamente, quando a pessoa sente alguma dor enquanto está no mundo do Criador, nesse momento faz o oposto. E embora não profira palavras condenáveis com a boca, ainda assim, o sentimento prevalece. Este é o título “ímpio”, pois quando sente alguma dor, necessariamente condena, uma vez que a queixa se expressa no próprio sentimento, e não precisa de ser mostrada publicamente.
Mesmo que ele profira uma bênção, é semelhante a lisonja, como um senhorio que bate no seu servo enquanto o servo diz: “Estou a gostar tanto da surra; estou simplesmente exultante.” Sobre tais foi dito: “Aquele que fala falsidade não será estabelecido.”
Por estas palavras, também compreenderá a definição do título “justo”. Refere-se a à pessoa que está no mundo do Criador, mas sempre recebe sensações boas e agradáveis, e está em constante prazer. Por esta razão, ele abençoa sempre o Criador, que o criou para lhe proporcionar um mundo tão bom e aprazível. Ele, também, certamente não precisa de proferir explicitamente as palavras, pois os próprios sentimentos são as bênçãos com que abençoa o Criador, como explicado na alegoria acima. É por isso que é chamado “justo”, pois justifica a criação e sente-a como ela verdadeiramente é, como está escrito: “E Deus viu tudo o que tinha feito, e eis que era muito bom.”
Este é o significado de “Um justo vive pela sua fé.” Vem ensinar-nos o poder do justo, pois parece ser incompreensível para uma pessoa comum, já que como pode uma pessoa estar neste mundo e ser poupada à dor e ao sofrimento? Ainda mais intrigante, ele está em constante prazer. Parece contradizer a razão.
E, no entanto, com o que foi dito acima, compreenderá que o próprio conceito de esforço e dor que existem na vida está presente apenas na forma de afastamento do pagamento em relação ao trabalho. Portanto, embora os pagamentos possam apagar o sofrimento e erradicá-lo, eles não o afetam durante o trabalho, e ele tem tempo para os experienciar, como detalhado acima.
É como o dono da loja, cuja dor do esforço é completamente erradicada. Quando ele a procura, ela desaparece durante o pagamento e o atendimento aos clientes, porque a recompensa e o trabalho vêm juntos, sem qualquer intervalo de tempo para a dor do esforço aparecer.
Agora compreenderá claramente as palavras do Zohar: “Onde há esforço, há a Sitra Achra [outro lado], pois ela é carente e todas as suas obras são em carência.” É assim porque aquele que foi recompensado com a fé completa, o futuro é para ele exatamente como o presente; caso contrário, não seria considerada completa.
Por exemplo, se uma pessoa de confiança nos promete algo, é como se nós o tivéssemos realmente recebido. Se a nossa sensação está algo carente, ou seja, se sentimos que seria mais agradável se nós realmente recebessemos essa coisa, então esse mesmo nível está em falta na nossa fé nele.
É, portanto, evidente que um justo, que foi recompensado com a fé completa — a tal ponto que os nossos sábios disseram: “O teu empregador é digno de confiança para te pagar a recompensa pelo teu trabalho” — sente necessariamente cada grama da dor do seu esforço nos pagamentos que recebe do Criador, embora não os tenha recebido no presente. Mas, para isso, a sua fé ilumina-o completamente, de tal forma que a própria dádiva não deixa espaço para acrescentar nem o mais pequeno nível de contentamento.
Se a dádiva fosse ligeiramente menos valiosa do que a promessa, mesmo no mais ínfimo nível, então ele ainda não teria alcançado a fé completa, e, por isso, não seria considerado justo. Contudo, ele alcançou necessariamente a plenitude da fé, onde a promessa lhe serve como doação, e ele não sente divisão entre o futuro e o presente. Assim, ele é como o dono da loja, para quem a dor do trabalho não pode surgir enquanto serve os clientes, pois o esforço e o pagamento vêm juntos. Este é o significado de “Um justo vive pela sua fé.”
Por isto, podemos compreender as palavras do Zohar: “Onde há esforço, há a Sitra Achra, etc., e há Kedusha apenas na plenitude.” É um sinal claro; se ele foi recompensado com a adesão à Kedusha, ele foi necessariamente recompensado com a fé completa.
Portanto, de onde veio a sensação de esforço? Deve ser que a Sitra Achra está sobre ele, porque a sua fé é incompleta. Assim, ele sente necessariamente dor, e então é chamado “ímpio”, como detalhado acima extensamente.
Este é o significado de “Os ímpios, nas suas vidas, são chamados ‘mortos’.” O ímpio é “de vida curta e cheio de ira”, e “Um justo vive pela sua fé.”
Agora compreenderá a questão dos filósofos sobre a nossa Torá no mandamento de amar o Criador. Por lei da natureza, não pode haver mandamentos ou coerção no amor. Pelo contrário, é algo que surge por si próprio, etc., como eles elaboraram na sua insensatez.
De acordo com o acima exposto, compreenderá a questão aqui, sobre a Torá ser dada apenas aos filhos de Israel, que foram primeiro recompensados com a fé completa, como está escrito: “E eles acreditaram no Senhor e no Seu servo, Moisés”, e também primeiro colocaram “Faremos” antes de “Ouviremos”.
Desta forma, alcançamos todas as 613 Mitzvot [mandamentos] para as cumprir com fé completa primeiro, como é sabido que esta é a porta da casa. Portanto, a extensão das palavras, “E amarás o Senhor teu Deus”, depende completamente do indivíduo, em esforçar-se ao máximo para alcançar esse nível perpétuo de receber sempre abundância de santidade, força e todo o deleite em prazer infinito.
Então, o amor é-lhe garantido por si próprio, como está ordenado nas leis da natureza, de tal forma que a medida do amor e o seu mandamento são equivalentes à nossa qualificação para receber Dele prazer infinito, encanto sobre encanto, como é o caminho da Kedusha — ela aumenta.
Isto está certamente nas nossas mãos, ou seja, a correção da fé. Com isto, a luz do Seu amor virá certamente por si própria, porque a sensação de receber o prazer é, em si, a expressão de amor e bênção para o Doador, como uma vela e a sua luz, e isto é simples.
Yehuda Leib