Carta 26
Kislev, Tav-Reish-Peh-Zayin, Novembro-Dezembro de 1926, Londres
À minha alma gémea… que a sua vela arda para sempre:
Recebi a sua última carta, datada do quinto dia de Kislev [Mês Hebraico, normalmente Dezembro], e quanto à sua surpresa pela escassez das minhas missivas, digo-lhe que enfrento muitas tribulações, e oro ao Criador para que me guie através delas.
Surpreende-me que não tenha interpretado as cartas que enviei ao nosso amigo acerca de “O anfitrião corta e o convidado abençoa”, pois ele escreveu-me que não as compreendeu. Parece que se cansou de ansiar por merecer o fardo da Torá e das Mitzvot devido aos estragos do tempo.
E que lhe posso dizer de longe, quando não pode ouvir a minha voz ou as minhas palavras, mas apenas contemplar letras secas e sem vida até que um espírito vivo lhes seja insuflado? Isso requer esforço, e, na sua opinião, o esforço exige tempo.
Está escrito: “Um sino de ouro e uma romã, um sino de ouro e uma romã, em toda a orla do manto... e o seu som é ouvido quando ele entra no lugar sagrado.”
O Efod [Colete, veste do Grande Sacerdote] provém das palavras ‘Ei Po Delet’ [onde está a porta], pois a Delet [porta] encontra-se no lugar da abertura quando esta está fechada. Na corporeidade, podemos ver a porta tal como vemos a abertura. Mas na espiritualidade, vemos apenas a abertura. Contudo, não podemos ver a abertura sem uma fé completa e pura. Então, vemos a porta, e nesse momento ela transforma-se numa abertura, pois Ele é um e o Seu nome é “Um”.
Esse poder, de atender à palavra dos sábios nesta realidade em Dalet, chama-se “fé”, pois não se estabelece de uma só vez, mas através da educação, da adaptação e do trabalho. É semelhante à instrução de uma criança, que seria como uma pedra não lapidada se não fosse o tutor que a educa. Por isso, este trabalho é geralmente chamado de “manto”, pois é uma vestimenta, “para além” da conceção humana, e nele há uma combinação, como na orla do Kli, que é o lugar onde o fermento e a imundície se acumulam.
Durante o período de instrução, ele está num estado de “vai e vem”, como todos aqueles que procuram a abertura. E no último momento da marcha, quando está perto da abertura, então, de todos os momentos, ele cansa-se e retrocede. Essa marcha chama-se Zahav [ouro], das palavras Ze Hav [dá isto], como está escrito no Zohar, que o caminhar se faz através do anseio e do desejo por Dvekut [adesão] com Ele, e ele anseia e canta, Ze Hav, Ze Hav.
Também é chamado “um sino” porque não tem força para abrir e retrocede, passando assim o seu tempo a ir e vir, vez após vez, procurando a abertura. Também é chamado Rimon [romã] porque a Romemut [sublimidade] do que está acima do intelecto envolve-o de todos os lados. Por isso, é novamente chamado Rimon, pois, de outra forma, cairia por completo.
Com o tempo, grande imundície e grande tremor acumulam-se “em toda a orla do manto”, tanto na forma do sino como na forma de um Rimon (que reúne) em torno do Ei Po Delet [onde está a porta], que não tem borda...
Mas por que o Criador fez isto assim às Suas criações? É porque Ele deve criar a voz para as palavras, para que a “boca de Deus” [pronunciado da mesma forma que ‘Po Delet’] apareça quando ele entra no lugar sagrado, como está escrito: “A sua voz é ouvida quando ele entra no lugar sagrado.”
Vai e aprende com as letras deste mundo, que há som apenas no tremor, como se sente nas cordas de um violino. Devido à tensão das cordas, há tremor no ar, que é o som, e nada mais. Da mesma forma, cada ouvido humano contém uma espécie de torção no ouvido que os médicos chamam “tímpano”. Quando a boca de outra pessoa atinge o ar, as centelhas de ar golpeadas chegam ao ouvido da pessoa, empurram-no e, assim, atingem o tímpano no ouvido. O tímpano treme de forma diferente com cada golpe, e este é todo o mérito da criatura escolhida, a espécie falante. Por causa disso, “todas as coisas [estão] sob os seus pés.”
Este é o significado de “alegrai-vos com tremor”. Disseram os nossos sábios: “Onde há alegria, haverá tremor.” É uma formulação abstrusa, pois poderiam ter dito simplesmente: “Alegria e tremor estarão juntos.”
Contudo, isto indica que a alegria não tem lugar sem o tremor. Como eles disseram, onde deveria haver alegria e regozijo, há tremor, que é o lugar da alegria.
Pode também tentar com um badalo [peça de metal dentro de um sino] que ressoa no ferro de uma taça, produzindo assim um som. Se colocar a mão na taça, o som cessa de imediato, pois o som que emana da taça é o tremor da taça; ao golpear com o badalo e colocar a mão, fortalece a taça e reduz a tremor, e portanto o som para.
Assim, pode ver que os sons — que o som e o tremor são uma só e mesma coisa. Contudo, nem todos os sons são aptos para o encanto, que reside na qualidade da forma anterior, ou seja, o tremor. Por exemplo, o som do trovão assusta e é desagradável ao ouvido humano, pois o tremor ocupa grande parte da força do embate e também dura demasiado. Mesmo que a força do embate fosse menor, ainda seria desagradável ao ouvido por ser demasiado prolongado.
Em contrapartida, o som de um violino é agradável ao ouvido do ouvinte, pois é proporcional à força que embate e é exatamente proporcional ao tempo. Aquele que prolongar o tempo, mesmo por uma fração de minuto, estragará o encanto.
Mais ainda se aplica ao entendimento dos sons para a palavra de Deus. É precioso e requer claramente grande precisão na força do embate, dividida em sete níveis. Mais ainda no tempo, para não estragar nem uma fração de minuto, pois ali há orgulho, como está escrito: “Colocaste os meus pés em cepos.” Então saberá que todos os anjos se elevam em cântico, e num lugar de alegria houve primeiro tremor.
Por isso, nem todo tremor é bom, mas aquele que está ansioso [a mesma palavra que treme em hebraico] pela palavra de Deus reúne todos os tremores num único lugar e apressa a alegria. Este é o significado de “Que as águas se reúnam… num só lugar”, e não de outra forma, Deus nos livre.
Disseram os nossos sábios: “Um violino estava pendurado sobre a cama de David. Quando chegava a meia-noite, um vento do norte vinha e soprava nele, e ele tocava por si próprio.” Aquele que treme pela palavra de Deus, o tremor vem em lugar do vento do norte, ou seja, como o Rimon [romã]. Por isso, “o anfitrião corta.”
A noite divide-se, como em “Uma oração faz metade.” Por isso ele está deitado na cama, que é o significado de “Nunca permitirá que o justo caia.” Como está escrito: “E ele deitou-se naquele lugar.” Explicaram: “Há Chaf-Bet [vinte e duas] letras, que é uma Chaf [também colher] que contém Bet [duas] letras — os dois pontos mais distantes na realidade diante de nós, como elaborei na minha carta.
Sobre a sua cama está o Rimon, como dito acima. E quando o ponto inferior aparece, o Criador sai para passear com os justos no Jardim do Éden, porque a porta está aberta e a Shechina [Divindade] entoa todos os seus cânticos e louvores. Por isso, o violino de David toca por si próprio, sem qualquer composição exceto pelo tremor do vento do norte.
E se as coisas ainda não estão claras, vai e estuda o alfabeto — que o Bet, com o qual o mundo foi criado, não carecia de nada exceto o Aleph de Anochi [Eu]. Esta é a brecha no vento do norte do Bet. Por isso: “Do norte irromperá o mal”, que é uma grande brecha.
Portanto, “Do norte vem o esplendor dourado.” Começa com sinos, e quando as duas letras se unem, a boca do Criador aparece. Por isso, as ansiedades devem ser reunidas num só lugar, para tremer apenas pela palavra do Criador, e então prepara-se “um sino de ouro e uma romã, em toda a orla do manto.”
Desta forma, o todo tornar-se-á gradualmente mais que o partido, e cheirará no temor de Deus, e sentirá que “Tudo o que o proprietário se preocupou, preocupou-se apenas por mim.” Ele saberá e verá sete partes do vento a tremer, ou seja, que além do vento do temor do Criador há mais seis ventos pairando sobre o Messias do Criador, como está escrito: “E o espírito repousará sobre ele… o espírito da sabedoria e do entendimento…”
Os nossos sábios disseram acerca disto: “O anfitrião corta.” Ou seja, embora o anfitrião corte, o convidado abençoa sobre o pedaço como se fosse um todo. Diz-se sobre aquele que não o faz: “Ladrões entrarão e profaná-lo-ão”, como está escrito: “Tomará ele, até a rainha, comigo em casa”, para chegar lá com crueza, com mais que do que está partido do que está pleno, suscitando desprezo e ira.
Este é o significado do Vav cortado [Vav-Yod-Vav] do Shalom [paz, despedida] de Pinhas, pois está com muito do que está partido diante dele, e a praga parou. Pela sua Kedusha [santidade], ele fez o que está de pé mais que o partido, e o povo reuniu-se com Moisés. A sua recompensa foi que o Criador disse a Moisés: “E… o pacto do sacerdócio eterno”, para a eternidade, como está escrito no Zohar.
Isto esclarece a Abraão o “este memorial” que lhe pertence, que está ali, para que não se considerem os pormenores das questões em que está envolvido, pois este é o conselho da inclinação e da Sitra Achra [outro lado], mas apenas em geral, como aqui expliquei de forma suficiente. Este é o significado de “Todas as ações do homem devem ter apenas o propósito de elevar a Shechina do pó, do qual se alimenta a serpente primordial.”
E que posso fazer àqueles que juram e se inclinam para a visão das massas, contentando-se com o consolo dividido que recebem através delas, como dizem as pessoas, “Problema partilhado, problema pela metade”? Por isso trabalham e acomodam-se, para receber recompensa. Mas se os seus caminhos se elevassem de uma vez por todas acima de dez pés, veriam a porta, pois é uma abertura amplamente aberta. Então, não haveria mais dois opostos no mesmo lugar e ao mesmo tempo, como está acima do Yod [dez].
… Está escrito: “Embora Ele escarneça dos escarnecedores, dá graça aos pobres” (Provérbios 3:34). Começarei com uma alegoria, e talvez compreenda: Um grande rei, O Bom Que Faz o Bem, desejava apenas deleitar os seus compatriotas, pois não precisava que trabalhassem para ele. Pelo contrário, o seu único desejo era beneficiar os seus compatriotas.
Contudo, ele sabia que há níveis nos vasos do seu benefício, conforme o seu amor por ele e a medida do reconhecimento do valor da sua sublimidade. Ele desejava deleitar abundantemente, especialmente os dignos entre os seus compatriotas, para que o resto do povo visse que o rei não nega recompensa àqueles que o amam sinceramente. Pelo contrário, na sua bondade, ele enche-os de deleites abundantes que preparou para eles. E, para além dos prazeres que ele derrama abundantemente sobre eles, têm um presente especial — sentem-se os escolhidos entre o povo. Isso, também, ele desejava dar àqueles que o amam.
Para evitar as queixas do povo, para que não mentissem ou se enganassem a si próprios, dizendo que também eles estão entre os amantes do rei, e ainda assim a sua recompensa é-lhes negada. E, pela plenitude do rei, ele também se protegeu disso, e por isso concebeu táticas para executar os seus planos em pleno.
Por fim, encontrou uma tática maravilhosa: Enviou um decreto a todo o povo do país, sem exceção, para que viessem trabalhar um ano inteiro para o rei. Designou um lugar no seu palácio para esse fim e estipulou explicitamente que era proibido trabalhar fora da área designada, pois isso é abominação, e o rei não ficaria agradado com isso.
A sua recompensa está no lugar onde trabalham. Ele preparou para eles grandes banquetes e todas as delícias do mundo, sempre que desejassem. No final do ano de trabalho, ele leva-los-á a todos à mesa do próprio rei, e estarão entre aqueles que veem a sua face, os mais eminentes do reino.
O decreto foi proclamado, e todos, sem exceção, vieram à cidade do rei, que é cercada por guardas e uma muralha. Fecharam-se ali por um ano, e o trabalho começou.
Pensaram que o rei tinha preparado vigias para supervisionar o seu trabalho, para saber quem o servia e quem não o fazia. Mas o rei escondeu-se, e não havia supervisão. Cada um fazia como lhe aprouvesse, ou assim lhes parecia. Contudo, não sabiam da tática maravilhosa — que ele colocou uma espécie de pó nocivo nas delícias e doces, e, em contrapartida, colocou um pó curativo na casa de trabalho.
Isso esclareceu a supervisão por si própria: Os seus amantes e aqueles verdadeiramente fiéis a ele — embora vissem que não havia supervisão naquele lugar — cumpriram os mandamentos do rei com cuidado, por amor a ele. Faziam o seu trabalho como lhes foi ordenado e eram cuidadosos em trabalhar precisamente na área designada. Assim, inalavam o pó curativo para os seus corpos, e, quando chegou a hora da refeição, provavam os doces e as delícias e encontravam neles mil sabores como nunca haviam provado, nem jamais sentido tal doçura.
Por isso, louvaram o rei extensivamente, pois estavam a jantar na mesa excelsa do rei!
Mas os inferiores não compreenderam de todo o mérito do rei, pelo qual ele deveria ser amado com amor devoto e fiel. Quando viram que não havia supervisão, não cumpriram devidamente o mandamento do rei. Menosprezaram a área designada para o trabalho, e cada um trabalhou onde lhe aprouvesse no domínio do rei. Quando chegou a hora da refeição e provaram os doces, sentiram um sabor amargo por causa do pó acima mencionado. Amaldiçoaram e desprezaram o rei e a sua mesa desprezível, que ele tinha preparado como recompensa pelo seu trabalho. Consideraram o rei o maior dos mentirosos, que — em vez de delícias e os mais finos prazeres — lhes deu coisas amargas e azedas.
Por causa disso, começaram a preparar para si próprios alimentos com o que encontravam na cidade, para aliviar a sua fome. Então, o seu sofrimento foi duplo, pois o seu trabalho duplicou, e não conheciam o deleite da mesa do rei que estava diante deles.
A lição é que a Torah se divide em duas partes: uma parte para a adoração ao Criador, como Tefillin, Shofar e o estudo da Torá, e uma parte para o trabalho com as pessoas, como roubo, furto, fraude e calúnia.
Na verdade, a parte entre homem e homem é o verdadeiro trabalho, e a parte entre homem e o Criador é a recompensa e os deleites espalhados pela mesa do rei.
Contudo, “Tudo o que o Senhor trabalhou, Ele trabalhou para o Seu próprio benefício”, pelo que a parte do trabalho com as pessoas também deve ser no lugar do rei, ou seja, “para elevar a Shechina do pó”. Nisso há um pó curativo para o veneno da morte que é lançado entre o homem e o Criador.
Este é o significado de “Ele dá graça aos humildes”, na Torá e nas Mitzvot entre homem e homem, e entre o homem e o Criador, “… àqueles que Me amam e cumprem os Meus mandamentos” — para que façam todo o trabalho no lugar designado. São eles que possuem a graça da santidade, e “herdarão o dobro na sua terra”, pois não só não trabalham arduamente para as pessoas, como se deleitam toda a sua vida pela graça do Criador.
Contudo, “Ele escarnece dos escarnecedores.” Eles dizem que a mesa do rei é desprezível, Deus nos livre, pois sentem a Kedusha como uma espécie de troça. Portanto, os ímpios não ganham com a sua iniquidade, então quem perderia algo se se afastasse deles, mesmo quando espera ser favorecido?
Yehuda Leib