Capítulo 6.2 - Abraão, o Patriarca
Em Génesis: “Disse o Senhor a Abrão: ‘Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu pai, para a terra que te mostrarei. Farei de ti uma grande nação, abençoar-te-ei e engrandecerei o teu nome; e serás uma bênção. Abençoarei os que te abençoarem, e amaldiçoarei aquele que te amaldiçoar; e em ti serão benditas todas as famílias da terra.’
Assim Abrão partiu, como o Senhor lhe ordenara; e Ló foi com ele. Abrão tinha setenta e cinco anos quando saiu de Harã. E Abrão leva Sarai a sua mulher, e Ló, filho de seu irmão, com todos os bens que tinham adquirido e as almas que receberam em Harã; e saíram para ir à terra de Canaã; e chegaram à terra de Canaã” (Génesis 12:1-5).
“E o Senhor apareceu a Abrão e disse: ‘Darei esta terra à tua descendência’; e ele construiu ali um altar ao Senhor, que lhe aparecera” (Génesis 12:7). “Havia fome na terra; e Abrão desceu ao Egipto para ali permanecer, pois a fome era grande na terra” (Génesis 12:10).
Será que a Torá fala de imigrar para uma terra melhor, ou seja, o Egipto, e será que o próprio Criador compeliu Abraão a ir para lá? Por que o Criador escolheu Abraão? Naquela época, ele era igual a todos os outros que viviam na região que se estendia do leste da Síria à Mesopotâmia. Abraão não foi diretamente para o Egipto. Primeiro, dirigiu-se a Betel, ofereceu um sacrifício ao Criador e pareceu apaziguar-se depois disso.
Está escrito que, em seguida, houve uma fome, e só então ele desceu ao Egipto. Surge uma pergunta: foi a fome que o levou ao Egipto, ou foi o Criador?
Se considerarmos a Torá como uma narrativa histórica, veremos que não é muito diferente da história de outras nações. Mas a Torá não trata do passado; ela trata de nós. Fala de cada um de nós, de quem somos, do que somos e do que devemos fazer com as nossas vidas. É assim que a Torá explica todo o sistema da Criação.
O homem contém em si tudo o que existe em todos os mundos, incluindo o nosso próprio mundo. Além do homem, existe apenas o Criador. O homem é o representante da Criação e de todos os outros mundos.
O Criador dirige-se a Abraão, ou seja, a uma qualidade específica em nós, que é como todas as outras propriedades (“nações”) no homem (o nome Abraão significa “Pai da Nação” em hebraico – Av Ha’am) e diz-lhe: “Agora separo esta característica específica em ti, que se chama Abraão, e deves deixar a tua terra, ou seja, a tua condição, todos os desejos em que estás atualmente, a tua terra natal, e libertar-te dos desejos com que nasceste.”
Ou seja, deves sair do teu estado original, o estado em que nasceste. Não é bom nem mau, mas deves abandoná-lo, deixar a casa de teu pai. Eu (o Criador) estou dentro dos teus desejos egoístas primários, e deves deixá-los e ir para a terra que te mostrarei. Aí me encontrarás. As palavras “que te mostrarei” referem-se aos desejos que o Criador indicará e nos quais Ele aparecerá. O Criador aparece diante de Abraão apenas para o compelir a seguir o caminho no fim do qual Ele se revelará em plenitude. Nesse estado, toda a Criação se manifestará diante de Abraão, e ele alcançará as qualidades opostas: a eternidade e a plenitude, e o nivel do próprio Criador.
O Criador aparece diante de cada um de nós. Todos sentimos, pelo menos uma vez na vida, uma voz interior, uma força interna, que nos impele a viver de forma diferente. Sentimos o desejo de pensar em coisas intemporais, significativas, deixando para trás as ocupações e rotinas mesquinhas da vida, elevando-nos gradualmente acima de tudo isso.
Quanto a Abraão, não há interesse algum em falar dele como uma pessoa que viveu há 5.000 anos, escolhida pelo Criador. Pelo contrário, quero focar-me na qualidade de Abraão que existe em cada um de nós. Como é que o Criador se dirige a ela e a usa para nos atrair, dizendo: “Abandona os teus desejos, a substância em que foste criado e na qual estás imerso, e vai para outro desejo, aquele que te mostrarei.”
O Criador não nos mostra que devemos ascender espiritualmente. Pelo contrário, Ele diz que devemos primeiro descer ao Egipto, ao abismo dos nossos desejos egoístas mais sombrios e ferozes. Esses desejos são tão egoístas que são como os dos egípcios, que sabiam usar o egoísmo de forma tão perfeita que podiam mumificar os seus corpos e preservá-los por séculos. Faziam ídolos dos seus mortos e permaneciam ligados aos seus corpos após a morte.
O Criador não diz a Abraão que ele deve aspirar para cima para atravessar para o outro desejo, onde encontrará o Criador, que então o preencherá com Luz.
Isto significa que o estado mais perfeito é quando Abraão já passou pelo Egipto. O Criador nem sequer diz que Abraão deve passar pelo Egipto, apenas lhe diz para ir para lá. Isso soa como um mandamento pouco razoável. Afinal, Abraão é uma pessoa comum que vive a sua vida diária no seio da sua família, um pastor.
De repente, ele é compelido a experienciar estados terríveis de declínio para alcançar o estado espiritual, e esses estados são chamados “Egipto”. Ninguém quer descer ao Egipto, então Abraão constrói um altar e agradece ao Criador por ter reparado nele, preferindo ficar onde está. Embora vá para Betel, pensa que ali está mais perto do Criador, mas na verdade o Criador afasta-o de lá.
Abraão vai até Betel. É como um homem que alcança a espiritualidade e começa a sentir-se atraído por livros que tratam desse tema. Lê-os, talvez até comece a estudar Cabala, e pensa que isso é a Casa do Senhor (Beit-El). Quando oferece um sacrifício ao Criador e começa a examinar o que a vida realmente lhe pede, o que o Criador e a sua voz interior querem que ele faça, de repente começa a sentir fome. Essa fome é tão intensa que o leva ao Egipto.
Da mesma forma, durante a leitura preliminar dos livros diante dele, o homem começa a sentir dores cada vez maiores, acompanhadas de uma fome espiritual ainda mais intensa. Começa a ver-se, através dos seus sentimentos mais profundos, como cada vez mais inferior e mesquinho. O mundo parece tão pequeno que esse sentimento é o mesmo que se sente ao descer ao Egipto, ou seja, aos seus desejos mais baixos.
A fase em que a pessoa se sente a si própria é a melhor e mais vital para o seu progresso. A intensidade ou qualidade da sensação não importa; pode ser boa ou má, edificante ou depressiva. Não se pode obter os desejos corretos sob a instrução direta do Criador sem estar no Egipto.
Os nossos desejos iniciais são muito pequenos, e mesmo que os estiquemos ao limite, só nos levam até Betel. Ou seja, podemos praticar a Torá comum e sentir-nos como alguém que já entrou na casa de Deus e no Jardim do Éden. Mas, na verdade, não é assim! A Torá deve primeiro levar-nos ao reconhecimento do mal, à sensação de que somos completos egoístas e de que todos os nossos desejos são completamente opostos à espiritualidade.
Se experienciarmos esse estado, se o compreendermos e interiorizarmos, não apenas porque os livros o dizem, então podemos aceitar que essa também é a nossa situação. O reconhecimento dos nossos egos deve ser uma experiência emocional e tangível. Na medida em que sentimos isso, começaremos a querer corrigir-nos. Portanto, reconhecer o nosso ego como mal é uma fase muito longa.
O exílio no Egipto não é destinado a Abraão, mas sim a Jacob e à sua família (José e os seus irmãos), que desceram ao Egipto. O exílio deveria durar 400 anos, mas, na verdade, foi mais curto. Baal HaSulam escreve que, por não terem completado os 400 anos, toda a nação que saiu do Egipto foi forçada a experienciar outro exílio, aquele que tem persistido nos últimos 2000 anos.
Para sentir quem somos e quais são as nossas propriedades, devemos experienciar, pelo menos um pouco, o que é a espiritualidade. Devemos vivenciar esses sentimentos plenamente e examiná-los de todas as formas. Quando o processo estiver concluído, ser-nos-á concedida a saída do Egipto.
Abraão é apenas a primeira fase. Quando começamos a estudar a sabedoria da Cabala, começamos a sentir que somos muito piores do que antes. Contudo, esse sentimento passa. É uma pequena entrada no Egipto. Depois, Abraão regressa a Betel.
Na segunda visita ao Egipto, ele leva consigo a sua família. Isso significa que, uma vez que acumulou uma quantidade substancial de desejos e já adquiriu uma noção clara do caminho, ele deve dirigir-se à espiritualidade. Nesta fase, ele já está num certo nivel de desenvolvimento espiritual e já o absorveu. Só depois disso lhe é concedida a segunda descida ao Egipto.
Abraão foi imediatamente para lá, mas só chegou até Betel. Isso acontece porque só se pode avançar pelo sofrimento.
Estamos, de facto, imersos nos nossos desejos egoístas. “A tua terra, a tua parentela e a casa de teu pai” representam todo o nosso ser. Não podemos sair desses estados, pelo menos pensamos que não, porque é a nossa natureza, e não conseguimos imaginar uma forma diferente de pensar, muito menos de agir. Não podemos imaginar o que não está em nós para começar, o que nunca sentimos, nem mesmo o que os nossos pais e antepassados nunca sentiram.
Por isso, só é possível tirar-nos desse estado e lançar-nos na aquisição de novos desejos através de uma fome espiritual imensa. Essa fome só pode ser desenvolvida e amplificada num grupo, com um professor e com livros muito especiais.
Se alguém ler esses livros na ordem errada, é muito fácil desviar-se e afastar-se do caminho certo, o que significa uma paragem temporária na evolução espiritual. Devemos manter sempre uma vigilância cuidadosa, verificando se estamos no caminho certo. Mas, na verdade, se permanecermos parados, mas ao mesmo tempo desejarmos a espiritualidade, então o próprio Criador nos empurrará, usando essa fome.
Abraão é uma propriedade espiritual que parece ser a base de todas as nossas propriedades. É um atributo espiritual geral que é o primeiro a ser abordado pelo Criador. As pessoas não vêm à sabedoria da Cabala porque foram enviadas, mas porque o Criador as abordou primeiro. Ele começa a persegui-las e a fazer-lhes sentir fome, e só então elas vêm.
Nunca perseguiremos algo sem uma razão ou uma necessidade especial. Apenas a sensação de fome nos tira da nossa terra. O amor e a fome governam o mundo, o que significa que a sensação de que nos falta algo é a única coisa que nos puxa. Essa sensação é chamada “Abraão”, e é a ele que o Criador se dirige e diz: “Queres realmente cumprir os teus sentimentos e alcançar a verdade? Se sim, deves abandonar completamente este sentimento e passar para outro sentimento chamado ‘Egipto’.”
Isto significa que deves realmente examinar os teus desejos egoístas a partir de dentro. Se os corrigires, alcançar-Me-ás; Eu revelar-Me-ei a ti neles. O Criador aparece precisamente nesses desejos que chamamos “Egipto”. Só depois disso é que eles são corrigidos.
Se usarmos este homem, Abraão. Num nível diferente, poderíamos referir-nos a ele como um profeta. Um profeta é uma pessoa que alcançou um nível tal que está agora em contacto direto com o Criador. Há profetas que apenas falam com o Criador, ou seja, atingem o nível do discurso espiritual.
Naturalmente, eles não ouvem trombetas a soar no céu, como a Torá escreve, e a voz de Deus não ressoa do Monte Sinai através de altifalantes gigantescos para toda a humanidade. É a voz interior daquele que obtém um contacto evidente com o Criador. Há profetas que veem e ouvem, e há aqueles que apenas veem e ouvem depois.
Os livros dos profetas demonstram a versatilidade das conexões dos profetas com o Criador, e como e quando Ele aparece diante deles, ou seja, em que nível cada um pode alcançar cada profeta. Os níveis de profecia, como todos os outros níveis dos nossos antepassados, estão dentro de nós. Cada um de nós deve vivenciá-los todos. Devemos percorrer todo o caminho enquanto estamos no nosso mundo corpóreo. Tudo o que a Torá fala deve ser alcançado por nós, do início ao fim.
Só então nos unimos completamente com o Criador e alcançamos o ponto final de desenvolvimento que constitui o propósito da Criação e o seu desígnio preliminar.
Na verdade, a Torá fornece-nos todo este plano, mas fala-nos dele de uma forma especial. A Torá pode ser percebida como uma narrativa histórica ou como imagens da vida comum das pessoas, ambas, claro, completamente incorretas. A nossa Torá é Sagrada; não é apenas mais um romance.
O Sefer Yetzira (Livro da Criação), que Abraão escreveu, é estudado em igualdade com o Zohar?
O Livro da Criação que Abraão escreveu foi escrito de forma concisa, como se fosse em resumo. O livro escreve simplesmente: “Este mundo foi criado em forma aparente, semi-aparente e oculta, em trinta e dois caminhos de sabedoria.” Pode levar anos a compreender corretamente até mesmo a primeira frase. Este livro foi escrito de forma sucinta, como se fosse segundo um certo código. É escrito para uma pessoa no mesmo nível espiritual, ou próximo mas inferior, mas não é destinado a nós.
Os restantes cabalistas, especialmente os mais contemporâneos, dirigem-se diretamente a nós. Quanto mais distante está a geração do tempo em que um certo livro de Cabala foi escrito, mais esse livro tem o direito de ser descoberto no nosso tempo. Desde o Ari, há uma diretiva clara do Alto para abrir tudo e ensinar todos.
Como resultado desse mandamento espiritual, os livros são escritos numa linguagem muito mais fácil de entender, de modo que a necessidade de intérpretes diminui. No entanto, ainda precisamos de professores. Sem um professor, é impossível entender qualquer coisa, embora o próprio material já seja muito mais acessível.