Capítulo 2.1 - O Propósito da Criação
Capítulo 2.1 - O Propósito da Criação
Existem cinco mundos entre o Criador e o nosso mundo: Adam Kadmon, Atzilut, Beria, Yetzira e Assiya. Abaixo do mundo de Assiya encontra-se a barreira e, sob essa barreira, está o nosso mundo. O nosso objetivo neste mundo é alcançar o nível do mundo de Ein Sof enquanto as nossas almas ainda estão revestidas dos nossos corpos materiais, alcançando assim a unificação completa com o Criador.
As propriedades do egoísmo transformam-se em cada nível, de acordo com as propriedades do Criador, até que, finalmente, o egoísmo seja completamente substituído pelo altruísmo e os atributos da nossa alma se tornem idênticos aos do Criador.
No nosso mundo, o egoísmo manifesta-se de duas formas: "receber com o objectivo de receber" e "dar (doação) com o objectivo de receber". A primeira tarefa daquele que deseja atravessar para o outro mundo é restringir o uso dos seus próprios desejos. Esse estado é denominado a "Primeira Restrição". Significa que a pessoa cessa totalmente de agir com os seus desejos egoístas.
Não podemos alterar o nosso desejo de receber, pois este é, na verdade, a única coisa que o Criador criou, mas podemos e devemos mudar a intenção do nosso desejo, passando de receber "para nosso benefício" a receber "para o benefício do Criador". Assim, o desejo de sentir prazer não se altera, apenas a intenção.
Por essa razão, o método de alteração da intenção denomina-se "sabedoria da Cabala" e, porque essa intenção está oculta aos olhos, a sabedoria da Cabala é também chamada de "sabedoria oculta". Ela ensina a receber através da transformação da intenção. Consequentemente, o mais importante é a intenção por trás de cada ação, o propósito pelo qual a pessoa faz o que faz. Os 125 níveis da escada espiritual representam níveis de correção gradual da intenção da alma, passando de receber "para seu próprio benefício" para receber "para o Benefício do Criador". Assim, o desejo de sentir prazer não muda, apenas a intenção.
Quando a Luz do Criador atravessa os mundos, enfraquece e torna-se adequada à receção por parte dos desejos mais débeis e altruístas. Quando a alma recebe a Luz da Correção vinda do Alto, começa a alterar a sua intenção de "receber para seu benefício" para "receber para o benefício do Criador", o que equivale à doação.
Depois de a alma realizar a Primeira Restrição sobre todos os seus desejos, alcança a "barreira". Nesse momento, recusa-se a realizar qualquer tipo de ação com o egoísmo, embora ainda não seja capaz de receber para o Criador.
Quando a alma corrige a sua intenção de doação no nível de Keter, significa que conseguiu superar o seu egoísmo mais subtil e pode abster-se de receber qualquer coisa para si própria. Nesse ponto, anula-se completamente perante a Luz Superior. É com este nível que a alma entra no mundo de Assiya, o primeiro mundo espiritual acima da barreira. Se a alma for capaz de vencer o seu egoísmo quando a Luz da Sabedoria brilha nela, eleva-se ao mundo de Yetzira.
Quanto maior for a capacidade da alma para resistir ao seu egoísmo, mais alto ascende nos níveis espirituais, até que, finalmente, alcança o mundo de Ein Sof. A alma é uma entidade espiritual que revela a sua essência apenas para além da barreira e nos níveis superiores a ela.
Os desejos com os quais se trabalha no mundo espiritual são puros e revelados; não estão revestidos das roupagens do nosso mundo. Um cabalista deixa de estudar este mundo ao entrar no mundo espiritual e passa a vê-lo apenas como uma consequência natural, um ramo de uma raiz espiritual. O foco do seu estudo passa a ser a causa, a raiz e a origem de cada desejo, e não as suas consequências no nível mais baixo e corrompido.
Aquele que ascende ao mundo espiritual substitui os seus desejos corpóreos por desejos voltados para o Criador. Tal como o recém-espiritualizado desejava desfrutar de todos os prazeres deste mundo, agora deseja desfrutar do Criador da mesma forma egoísta. Esse estado é denominado "sofrimento para dormir".
Mas, através da iluminação da Luz Circundante, que está sempre presente, há um aumento gradual no desejo de espiritualidade, até que este se torne tão intenso que a pessoa já não consiga dormir, obscurecendo todos os outros desejos.
Apenas a Luz Superior do Criador pode causar tal transformação numa pessoa – responder a todo o esforço para alcançar a espiritualidade e levá-la a um estado em que o desejo pela espiritualidade se torna tão intenso que já não consegue dormir, sobrepondo-se a todos os outros desejos.
O processo é idêntico para todas as almas, mas cada alma tem a sua própria missão neste mundo. Cada alma também percorre o seu caminho até ao Criador a uma velocidade diferente.
Cada pensamento, cada desejo e cada movimento que fazemos neste mundo, independentemente de quem sejamos, é-nos concedido com um único propósito: elevarmo-nos e aproximarmo-nos da espiritualidade. No entanto, na maioria dos casos, esse progresso ocorre de forma natural e inconsciente, nos níveis de inanimado, vegetativo e animal, no homem.
Tudo está previamente planeado de acordo com o propósito da Criação. O nosso livre arbítrio consiste apenas em concordar com o que nos acontece, compreendendo para onde isso nos conduz e desejando tornar-nos parte ativa nos acontecimentos da nossa vida.
Todos os pensamentos e desejos do mundo de Ein Sof passam por cada um de nós. Mas apenas os pensamentos que correspondem ao nosso nível atual são "captados".
O nosso nível de espiritualidade determina o nosso alcance de influência e a nossa perceção do mundo em que vivemos. À medida que evoluímos, os nossos pensamentos tornam-se mais profundos e descobrimos novas ligações entre os objetos e os fenómenos da realidade. O nível do nosso desenvolvimento define a capacidade que temos de perceber a parte do mundo de Ein Sof que conseguimos sentir.
Não há outro meio de despertar em nós o desejo pela espiritualidade e atrair a Luz Circundante, senão através do estudo em grupo, sob a orientação de um professor cabalista. Esse é o único caminho para tomarmos parte ativa no plano da Criação e encurtarmos o processo pelo qual a natureza nos conduz até à sua realização. Só a Luz pode ajudar-nos a substituir os nossos atributos egoístas por atributos altruístas. Isso porque as nossas características egoístas constituem uma barreira entre nós e o mundo espiritual.
A Luz Circundante transforma o nosso desejo de receber num desejo de dar, transportando-nos assim através da barreira. Dizemos que nada queremos do material, mas se compreendêssemos a importância essencial dessa mudança ao atravessar a barreira – que representa a transição de uma concentração total no próprio benefício para uma preocupação pura pelos outros – teríamos evitado todo o processo.
Apenas depois de atravessarmos a barreira encontramos o "oceano de Luz". A Luz do Criador brilha apenas na medida em que O consideramos mais importante do que o nosso desejo egoísta. É essa importância que nos permite adquirir gradualmente a propriedade de doação da Luz.
A etapa mais crucial é atravessar a barreira. Acima da barreira, a alma reconhece o caminho por si própria, pois recebe a Luz que lhe ensina os passos seguintes e as ações necessárias, como um guia ou um mapa. É sobre isso que os cabalistas escrevem nos seus livros.
Como pode um pensamento negativo sobre o Criador ser transformado num pensamento positivo? Primeiro, é necessário reconhecer que esse pensamento é mau, para que possamos pensar na sua correção. Esse mal só pode ser visto com a Luz do Criador, através da Sua grandeza. No entanto, se a Luz do Criador não brilhar, não conseguimos ver. No início, todos acreditamos que os nossos pensamentos são bons. Mas encontramo-nos neste mundo, abaixo da barreira, nas trevas, num estado onde a Luz não nos alcança.
Quando a Luz Circundante ilumina a pessoa, começamos a ver a nossa verdadeira essência. Esse processo é chamado de "reconhecimento do mal". Mas antes que a Luz brilhe sobre nós, procuramos sempre justificar-nos. Pensamos que estamos sempre certos. Porém, uma vez sob a Luz do Criador, começamos a perceber o mal dentro de nós, o que nos leva a pedir ajuda ao Criador, a fonte dessa iluminação.
Se o nosso pedido for genuíno, o Criador vai transformar a nossa natureza. Contudo, o desejo de receber não muda; apenas a intenção se altera, passando de "para nosso benefício" para "para o benefício do Criador". Essa transformação chama-se "doação". Assim, a pessoa muda gradualmente os seus atributos para os atributos do Criador, ao longo dos 125 níveis da escada espiritual.
Cada nível consiste em vários processos:
- O reconhecimento do mal – é a perceção de quanto somos inferior ao Criador, na nossa linha esquerda.
 - Examinar que tipo de ajuda precisamos realmente de receber do Criador, a partir da linha direita.
 - Colocar uma linha contra a outra, testando até que ponto podemos realmente receber da linha direita. Isto é considerado alcançar a linha do meio.
 
Os desejos da pessoa determinam os seus atos. Consequentemente, é impossível fazer algo sem o querermos! Por exemplo, se sabemos que temos de acordar cedo amanhã, então deitamo-nos cedo na noite anterior. Isso é contra a nossa vontade? Não! Nenhuma pessoa e nada neste mundo podem agir sem antes o desejar, sem satisfazer um desejo através do prazer, que é a energia, a força motriz que permite qualquer movimento.
Por vezes, pensamos que fazemos algo contra a nossa vontade, mas isso não é verdade. Simplesmente calculamos e decidimos que é melhor agir de uma forma e não de outra, mesmo que pareça ir contra o nosso desejo. Suportamos muitas coisas se o cálculo o justificar.
Aproximamos certos desejos do nosso coração e tornamo-nos capazes de os realizar através da escolha. No entanto, ninguém pode sequer levantar um dedo sem uma força motivadora ou sem um desejo prévio que o impulsione.
Quando fazemos algo de bom por outra pessoa, acreditamos que estamos realmente a agir de forma desinteressada. Mas se analisarmos profundamente os nossos pensamentos, descobrimos que tudo é feito com um único propósito: agradar a nós próprios. Qualquer outra ideia é uma ilusão.
Quando começamos a estudar a Cabala, começamos a compreender como o sistema funciona, como cada ser humano é um egoísta absoluto e pensa apenas em si próprio, nem sequer nos próprios filhos. Neste ponto, descobrimos que todo o nosso sistema de pensamento se baseia em ilusões e que acreditamos poder realmente fazer algo pelos outros.
Só é possível dar algo a outro se, de alguma forma, recebermos algo em troca, se houver um benefício para nós. Não há vergonha nisto; é a nossa natureza. Ou recebemos para desfrutar, ou damos para obter algo em troca. Ninguém é culpado por isso. O único desejo que devemos cultivar é mudar os nossos atributos para que se assemelhem aos do Criador.
A Cabala ensina-nos a aceitar-nos como fomos criados. Não devemos odiar ou sentir revolta ao observar as nossas próprias características ou as dos outros. Para um estudante de Cabala, pode ser difícil lidar com o mundo exterior. Os alunos tendem a ter pouca paciência ao deparar-se com o egoísmo das pessoas que encontram. No entanto, cada ser humano foi criado com um propósito, e o que devemos fazer é apenas ajudá-los a transformar os seus atributos em altruísmo.
Tudo o que se opõe ao nosso desejo causa sofrimento. Está escrito no Talmude que, se queremos tirar uma determinada moeda do bolso, mas acabamos por tirar outra, já sentimos sofrimento. Qualquer coisa na vida que não corresponda exatamente ao nosso desejo provoca-nos sofrimento. Um mau humor, uma doença ou a falta de motivação para fazer algo são interpretados por nós como dor.
No entanto, tudo o que acontece é em nosso benefício. Tudo nos impulsiona, de uma forma ou de outra, em direção ao propósito da Criação. Apenas os nossos sentimentos distorcidos nos fazem ver o bem como mal e o doce como amargo. A verdadeira bondade só pode ser sentida acima da barreira; por agora, tudo nos parece dor. Isto acontece porque a Luz ainda não pode preencher a alma enquanto o desejo não adquirir uma intenção altruísta que seja compatível com a Luz, deixando-a, assim, de fora.
Até alcançarmos a espiritualidade, o desejo de receber é o nosso "anjo da vida". No entanto, quando começamos a estudar a Cabala, atraímos sobre nós a Luz Circundante e começamos, pouco a pouco, a perceber que o nosso desejo de receber é, na verdade, um obstáculo que se interpõe entre a nossa natureza egoísta e a sua transformação em altruísmo. Passamos a ver esse desejo como o verdadeiro inimigo do nosso progresso espiritual, transformando assim o "anjo da vida" no "anjo da morte".
O processo de reconhecimento do mal começa dentro do próprio egoísmo. A perceção da Luz contrasta com as propriedades da Luz que começamos a sentir. Surge em nós um imenso desejo de nos libertarmos destas correntes a qualquer custo. Mas, como não o conseguimos fazer sozinhos, clamamos desesperadamente pela ajuda do Criador. Se o nosso apelo for sincero, será respondido.
Aqueles que desejam alcançar a espiritualidade devem ser como qualquer outra pessoa: devem constituir família, trabalhar e levar uma vida normal. O que realmente importa é o que fazem nas duas ou três horas livres do seu dia, aquelas em que não estão comprometidos com a família ou com o trabalho. São essas as horas que devem usar para se examinarem a si próprios, para verem se as gastam em frente à televisão, num restaurante, ou a esforçarem-se para alcançar um objetivo espiritual.
A diferença entre homens e mulheres no nosso mundo resulta da relação entre a parte masculina e a parte feminina da alma. Como consequência, homens e mulheres têm perspetivas diferentes sobre a vida, assim como obrigações e objetivos distintos.
As partes masculina e feminina de cada Partzuf no mundo espiritual complementam-se mutuamente: a parte feminina contribui com os seus desejos, e a parte masculina contribui com as suas telas (massachim). No final, é a sua combinação que conduz à realização espiritual e à perfeição, culminando na revelação da Luz, na revelação do Criador.
A correção de uma destas partes não acontece à custa da correção da outra, como ocorre nas relações egoístas, onde cada um puxa para o seu próprio lado. Na espiritualidade, tudo existe dentro de um único Partzuf, um único corpo, ao passo que, no nosso mundo, surgimos em corpos separados. No mundo espiritual, cada objeto só pode existir se complementar outro em prol de um objetivo comum.
Por isso, segundo a Cabala, nunca pode haver uma "família verdadeira" ou uma "relação verdadeira" entre os sexos, a menos que se trate de almas que desejam corrigir-se espiritualmente. Assim, na medida em que se corrigem, também as relações egoístas dentro da família se transformam em relações altruístas.
A espiritualidade é algo íntimo para cada pessoa. Não deve ser discutida com ninguém, e os sentimentos em relação ao Criador devem ser guardados para si própria, de modo a não interferir com o progresso individual de outrem. A experiência espiritual é única para cada pessoa e só se tornará acessível a todos no final da correção, altura em que já não haverá lugar para obstruções como a inveja egoísta.