Capítulo 28. Não pelo seu Próprio Benefício
A vida é considerada um estado em que percebemos desejos de obter prazer, seja ao receber ou ao dar. Se o desejo de obter prazer desaparecer, então o novo estado será de inconsciência, desmaio ou morte. Podemos encontrar-nos num estado em que vemos e sentimos claramente que já não conseguimos receber mais prazer, por exemplo, devido à vergonha que sentimos por ações passadas.
Se o sofrimento for tão intenso que até o menor prazer que retiramos da vida for anulado, deixaremos de sentir vontade de viver. Assim, através do ambiente que nos rodeia, de inimigos, da ruína financeira ou do fracasso no trabalho, aqueles que ascendem espiritualmente podem experienciar sensações de desespero, angústia e uma total falta de sentido da existência.
Por isso, devemos empenhar-nos em receber prazer ao realizar ações que são consideradas boas aos olhos do Criador e, assim, trazer-Lhe alegria. Esses pensamentos e ações contêm um prazer tão imenso que podem neutralizar o maior dos sofrimentos neste mundo.
Talvez já nos encontremos na fase em que conseguimos realizar atos altruístas. Independentemente da ação em que estivermos envolvidos, não faremos cálculos para benefício próprio, pensando apenas no bem daquele para quem o ato é realizado (ou seja, para o Criador).
Contudo, se ao mesmo tempo não retirarmos prazer das nossas ações altruístas, então essas ações serão consideradas como doação pura. Por exemplo, observar os mandamentos apenas por amor ao Criador não nos vai conceder a Luz do Criador (o prazer) correspondente a cada mandamento, pois o processo de autotransformação ainda não está concluído.
Se recebêssemos o prazer da Luz sem restrições, correríamos o risco de despertar o nosso egoísmo, que exigiria então obter prazer a qualquer custo, para satisfação própria. Nesse ponto, a pessoa já não ia conseguir resistir ao prazer e recebê-lo-ia não com o propósito de agradar ao Criador, mas devido à força incontrolável do desejo de desfrutar.
Os Kelim [Vasos] com os quais realizamos atos altruístas são conhecidos como "vasos de doação". Um objeto espiritual tem uma estrutura semelhante à do corpo físico e é composto por 613 órgãos.
Em geral, a configuração das forças espirituais assemelha-se à estrutura física dos nossos corpos.
Por esta razão, os 248 vasos de doação situam-se acima do torso superior do objeto espiritual e correspondem a atos espirituais positivos que cada pessoa está obrigada a realizar.
A Luz recebida por quem cumpre estes atos espirituais é conhecida como "Luz da graça" (Ohr Hassadim) ou "graça oculta" (Hassadim Mehusim). A Luz da sabedoria (Ohr Hochma) permanece oculta ao recetor.
Aquele que tiver uma vontade forte vai corrigir os seus desejos ao ponto de conseguir realizar atos altruístas e receber prazer deles pelo benefício do Criador, ou seja, receber prazer nos desejos que antes eram egoístas. Este processo é conhecido como "Receber para fazer doação".
Assim, essa pessoa será capaz de receber a Luz que está contida em cada ato espiritual. (Os mandamentos da Bíblia são atos espirituais. Uma vez que cada pessoa no nosso mundo tem a obrigação de cumprir estes mandamentos, independentemente do seu nível espiritual, eles representam uma etapa preparatória necessária em conformidade com o seu objetivo espiritual primordial: trazer prazer ao Criador).
A primeira fase do nosso caminho para compreender o propósito da criação passa pelo trabalho em nós próprios com o intuito de obter benefícios pessoais ("Não pelo Seu Benefício"), pois existem muitas formas de sentir prazer – comer, jogar, receber honras e reconhecimento, etc. No entanto, estes métodos apenas nos permitem sentir prazeres pequenos e passageiros. A motivação por detrás dessas ações é "para o eu".
Podemos alcançar prazeres muito maiores se tivermos fé no Criador – na Sua omnipotência, na Sua soberania sobre o mundo inteiro e sobre tudo o que acontece a cada um de nós, no Seu domínio sobre cada detalhe das nossas vidas, na Sua disposição para ajudar quando ouve as nossas preces e na certeza de que tudo isto é verdadeiro.
Só depois de concluirmos a primeira etapa deste trabalho vamos receber sensações muito diferentes, especiais, próprias de um estado espiritual mais elevado. Como resultado, deixaremos de nos preocupar com o facto de podermos ou não obter algum benefício pessoal das nossas ações. Pelo contrário, todos os nossos pensamentos e cálculos estarão voltados para alcançar a verdade espiritual. As nossas intenções e reflexões vão concentrar-se em ceder à essência das verdadeiras leis da criação, em perceber e cumprir apenas a Vontade do Criador, que vai surgir naturalmente da nossa perceção da Sua grandeza e poder.
Então, vamos esquecer as nossas motivações passadas e perceber que não temos a menor inclinação para pensar ou preocupar-nos connosco próprios, que nos rendemos completamente à grandeza da Razão Suprema, que transcende tudo, e que já não conseguimos ouvir a voz da nossa própria razão. A nossa principal preocupação será como fazer algo que seja agradável ao Criador. Este estado é conhecido como "não para seu próprio benefício".
A causa subjacente da fé reside no facto de não existir prazer maior do que perceber o Criador e ser preenchido por Ele. Mas para que possamos receber esse prazer sem egoísmo, é necessário que o Criador permaneça oculto; este estado de ocultação permite-nos cumprir os mandamentos sem receber qualquer prazer em troca. Tal ato é considerado como "não pelo benefício de receber recompensa".
Quando alcançamos este estado e formamos um vaso espiritual adequado, começamos imediatamente a ver e a perceber o Criador com todo o nosso ser. A razão que antes nos impulsionava e convencia a trabalhar para o Criador em busca de benefício pessoal desaparece e é até comparada à morte, pois antes estávamos ligados à vida e alcançávamos essa sensação através da fé.
Mas se, ao estarmos já num estado corrigido, começarmos a trabalhar para alcançar a fé acima da razão, então recuperamos as nossas almas, a Luz do Criador.
Alcançar "Lishma"
Os nomes cabalísticos, apesar de terem sido retirados do nosso mundo, representam objetos e ações completamente diferentes no mundo espiritual, sem qualquer relação com os deste mundo. É verdade que os objetos espirituais são as fontes imediatas dos objetos que existem no nosso mundo [ver "A Linguagem da Cabala", parte 1; "Os Nomes do Criador", parte 3].
Dessa incongruência e da falta de semelhança entre a causa espiritual e o efeito que encontramos no nosso mundo, percebe-se mais uma vez quão distantes os objetos espirituais estão dos nossos conceitos egoístas. No mundo espiritual, um nome representa uma manifestação específica da luz do Criador para uma pessoa, através de uma ação que recebe esse nome particular.
Da mesma forma, no nosso mundo, cada palavra revela algo que não pertence ao próprio objeto, mas sim à nossa perceção desse objeto. O fenómeno ou o objeto em si próprio encontram-se completamente fora do alcance da nossa perceção. São entidades por si próprias, absolutamente incompreensíveis para nós.
Sem dúvida, o objeto possui formas e qualidades totalmente diferentes das que podemos detetar através dos nossos sentidos ou instrumentos. Esse conceito pode ser ilustrado com o exemplo da diferença entre ver um objeto com os próprios olhos e vê-lo através de raios X ou de frequências térmicas.
Em qualquer caso, um objeto e a perceção desse objeto existem separadamente.
A perceção surge a partir das qualidades do próprio observador. Assim, a combinação do objeto (ou seja, das suas qualidades reais) com as qualidades do observador dá origem a uma terceira entidade: a imagem do objeto formada pelo observador. Esta imagem resulta tanto das características próprias do objeto como das qualidades daquele que percebe.
No trabalho com a Luz espiritual, há dois estados distintos para aquele que deseja receber e que recebe essa Luz: o estado de perceção e qualidades da pessoa antes de a receber e o estado após a sua receção.
Existem também dois estados da Luz que preenchem os vasos-desejos de uma pessoa: o estado da Luz antes de entrar em contacto com as sensações e desejos da pessoa, e o estado da Luz após ter entrado em contacto com aquele que a percebe.
No estado anterior, a Luz é designada por Luz Simples, porque não tem qualquer ligação às qualidades daquele que a percebe. Uma vez que todos os objetos, exceto a Luz do Criador, desejam receber e ser gratificados pela Luz, não existe, de facto, qualquer possibilidade de perceber, examinar, sentir ou sequer imaginar a Luz fora de nós próprios.
Assim, se nos referirmos ao Criador como o Forte, é porque, nesse momento, sentimos (quem sente verdadeiramente!) a Sua força. Mas, sem perceber alguma qualidade do Criador, é impossível referirmo-nos a Ele por qualquer nome, pois até a palavra "Criador" implica que a pessoa percecionou esta qualidade particular da Luz.
No entanto, se uma pessoa pronunciar os nomes do Criador (isto é, enumerar as Suas qualidades) sem ter percecionado essas qualidades através dos sentidos, tal ato implica que essa pessoa atribui nomes à Luz Simples antes de sentir, em si mesma, o significado desses nomes, o que equivale a mentir, uma vez que a Luz Simples não tem nome.
Aqueles que aspiram a elevar-se espiritualmente devem evitar influências externas e proteger as convicções pessoais que ainda não amadureceram, até receberem as perceções necessárias que as possam sustentar. A principal defesa e o maior afastamento não devem ser dirigidos às pessoas que estão distantes da Cabala, pois estas apenas podem transmitir indiferença ou, no máximo, negatividade, o que indica uma grande divergência em relação ao estado da pessoa empenhada na ascensão espiritual.
A defesa deve ser dirigida às pessoas que, aparentemente, estão próximas da Cabala.
Por outro lado, um principiante não precisa de se preocupar com as pessoas que estão distantes da Cabala, pois é evidente que nada há a aprender com elas, não representando, por isso, qualquer ameaça de escravização espiritual.
O nosso egoísmo permite-nos progredir apenas quando a pessoa sente temor
Nesse momento, impele-nos a realizar todo o tipo de ações, apenas para neutralizar essa sensação. Por conseguinte, se a pessoa pudesse sentir temor do Criador, poderia desenvolver a força e o desejo necessários para trabalhar.
Existem dois tipos de medo: o medo de transgredir um mandamento e o temor do Criador. O primeiro é um medo que impede o indivíduo de pecar, caso contrário, esse indivíduo pecaria. No entanto, se uma pessoa não tem medo de pecar porque todas as suas ações são realizadas unicamente em nome do Criador, essa pessoa vai cumprir todos os mandamentos de qualquer forma, não por medo, mas porque esse é o desejo do Criador.
O medo da transgressão (pecado) é um medo egoísta, pois é motivado pela preocupação de causar dano a si próprio. O temor do Criador é considerado um medo altruísta, dado que é motivado pela preocupação de não cumprir o desejo do Criador, devido a sentimentos de amor.
Mas, apesar do enorme anseio em cumprir tudo o que traz alegria ao Criador, é, ainda assim, muito difícil observar os mandamentos do Criador (ações que são desejadas pelo Criador), porque não se percebe a necessidade de os cumprir.
O temor que emana da sensação de amor deve ser mais forte do que o medo egoísta. Por exemplo, quando a pessoa antecipa que será vista no momento de cometer um crime, ou simplesmente uma transgressão, essa pessoa experienciará sensações de sofrimento e vergonha.
De forma semelhante, um cabalista desenvolve em si uma sensação de ansiedade por não fazer o suficiente pelo Criador. Esta sensação é tão constante e intensa quanto o medo do egoísta de ser punido por transgressões evidentes.
"A pessoa aprende apenas aquilo que deseja aprender." ("A pessoa aprende apenas onde o seu coração deseja.") Partindo deste pressuposto, torna-se claro que a pessoa nunca vai aprender a observar determinadas regras e normas, a menos que o deseje. Mas quem quer ouvir lições de moral, sobretudo quando, na maioria das vezes, não se percebem as próprias falhas? Como, então, pode alguém, mesmo aquele que aspira à autocorreção, alcançar esse objetivo?
O ser humano é criado de tal forma que existe apenas um desejo: satisfazer-se a si próprio. Assim, as pessoas aprendem apenas com o intuito de encontrar um meio de satisfazer os seus desejos e não vão aprender algo que não esteja relacionado com essa satisfação, pois essa é a nossa natureza.
Assim, para que aqueles que desejam aproximar-se do Criador possam aprender a agir "em nome do Criador", devem pedir-Lhe que lhes conceda corações novos, substituindo o egoísmo por desejos altruístas. Se o Criador atender a este pedido, então, em qualquer lugar onde aprendam, vão encontrar formas de Lhe agradar.
No entanto, nunca perceberemos nada que esteja em contraste com o nosso coração, seja altruísta ou egoísta, e nunca nos sentiremos obrigados a algo que não satisfaça o nosso coração. Mas, assim que o Criador transformar o coração egoísta num coração altruísta, compreenderemos imediatamente as nossas obrigações, a fim de podermos corrigir-nos com o auxílio das qualidades recém-adquiridas, bem como descobrir que nada é mais importante neste mundo do que agradar ao Criador.
Além disso, as qualidades que víamos como falhas vão transformar-se em virtudes, porque, ao corrigi-las, vamos proporcionar prazer ao Criador. Mas aqueles que ainda não estão preparados para se corrigirem não vão conseguir ver as suas próprias falhas, pois estas só nos são reveladas na medida em que somos capazes de as corrigir.
Todas as ações humanas relacionadas com a satisfação das necessidades pessoais, bem como todo o trabalho "em benefício próprio", desaparecem quando se parte deste mundo. Tudo o que nos importava e pelo qual sofremos desvanece-se num instante.
Por conseguinte, se formos capazes de avaliar se vale a pena trabalhar por algo neste mundo para depois o perdermos no último momento da nossa vida, poderemos concluir que é preferível trabalhar "em nome do Criador". Esta decisão vai levar-nos a reconhecer a necessidade de pedir ajuda ao Criador, especialmente se tivermos investido grande esforço na observância dos mandamentos com a expectativa de obter algum benefício pessoal.
Aquele que não se dedicou profundamente ao estudo da Cabala tem um desejo menor de transformar as suas ações em ações "em nome do Criador", pois não tem tanto a perder, enquanto o trabalho de transformação interior exige grande esforço.
Por este motivo, a pessoa deve empenhar-se, com todos os meios ao seu alcance, em intensificar o esforço no trabalho Lo lishma ("não pelo benefício do Criador"), porque isso vai conduzir, posteriormente, ao desenvolvimento do desejo de regressar ao Criador e, então, ao trabalho lishma, em Seu benefício.