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Capítulo 20. O Regresso Ao Criador 

O Regresso ao Criador

Para implementar a Supervisão Divina, e assim permitir o livre-arbítrio nas ações do homem, foram criados dois sistemas de governação. A cada força positiva e pura opõe-se sempre uma força negativa e impura. Foram criados quatro mundos de ABYA de kedusha (positivos), em oposição a quatro mundos negativos e impuros de ABYA de tuma'a (impureza).
No nosso mundo, a diferença entre as forças puras e impuras não é evidente, tal como parece não haver distinção entre aquele que ascende espiritualmente em direção ao Criador e aquele que não se desenvolve espiritualmente. Nós próprios não somos capazes de conhecer a verdade sobre se estamos a progredir ou a permanecer estáticos, nem conseguimos determinar se é uma força positiva ou negativa que atua sobre nós. Por isso, uma consciência e confiança de que os nossos caminhos são verdadeiros e corretos é extremamente enganadora, e frequentemente podemos não ter escolhido corretamente.
Mas, se estamos no início da nossa jornada espiritual, como podemos avançar corretamente para alcançar o objetivo da criação e o propósito da nossa existência? Sem uma compreensão clara do que constitui o bem e o mal para o nosso destino final e para o nosso verdadeiro e eterno bem-estar, em vez de uma gratificação ilusória e efémera, como podemos encontrar o caminho certo neste mundo?
Toda a humanidade vagueia perdida, como numa floresta, criando teorias erradas sobre o objetivo essencial da vida e como alcançá-lo.
Mesmo aqueles que estão no ponto de partida do caminho correto não possuem marcos e são incapazes de determinar se os seus pensamentos e desejos são corretos ou não.
Será possível que o Criador nos tenha criado sem nos preparar com qualquer auxílio para o nosso estado desesperado e insolúvel? O senso comum diz que não é razoável criar algo com um objetivo claro e depois abandonar o processo nas mãos de criaturas tão frágeis e cegas como nós.
Certamente, o Criador não teria agido assim. Portanto, presumivelmente em todas as situações, Ele deu-nos um meio de encontrar o caminho correto. Na verdade, o único caminho é ir acima da razão. Em todos os nossos percursos, enfrentamos falhas e aprendemos como não ir naquela direção. Não conseguimos ter sucesso numa ação sem antes tropeçar. Quando sentimos que alcançamos um estado de desespero, precisamos do Criador.
De facto, existe uma confirmação muito importante de quão correto é o caminho escolhido, e essa é a ajuda do Criador! Aqueles que escolhem o caminho dos ABYA impuros e egoístas não alcançam o seu destino espiritual, perdem todas as suas forças no processo e, por fim, chegam à barreira do desespero final, pois não recebem a revelação do Criador sobre o quadro completo da criação.
Por outro lado, aqueles que seguem os caminhos dos mundos puros de ABYA são recompensados com a consciência e a compreensão de toda a Criação, dadas como uma bênção do Criador. Estas pessoas conseguem alcançar o estado espiritual mais elevado.
Portanto, este é o único teste no nosso mundo (no nosso estado) sobre qual caminho devemos seguir, como devemos agir e que pensamentos devemos escolher para alcançar os nossos objetivos, independentemente dos pensamentos e desejos que recebemos tanto do mundo puro de Assiya como do mundo impuro de Assiya.
A diferença entre aqueles que seguem o caminho certo e aqueles que erram é que o Criador se vai revelar aos primeiros e vai atraí-los para Si, ao contrário dos segundos.
Assim, se virmos que os segredos da Cabala não se tornam evidentes para nós, devemos concluir que esse caminho é incorreto, embora o entusiasmo, a forte convicção e a imaginação possam apontar noutra direção e indicar que já alcançamos certas alturas espirituais. Tal desfecho é comum entre aqueles que se dedicam a estudos amadores da Cabala e filosofias “místicas”.
Todo o nosso caminho de ascensão espiritual ao longo das etapas dos mundos ABYA pode ser descrito como um esforço alternado de forças, emanando de cada etapa consecutiva em que nos encontramos num dado momento. Cada uma dessas forças é designada por uma letra específica do alfabeto hebraico. Ou seja, cada letra simboliza uma força espiritual que governa uma certa etapa nos mundos ABYA. Mas apenas uma força é capaz de nos salvar e libertar do domínio dos desejos egoístas. Essa força é a bênção do Criador, representada pela letra bet.
Não existe uma força oposta correspondente nos mundos impuros de ABYA, pois a bênção provém do único e verdadeiro Criador, e nada pode igualá-Lo em qualquer mundo impuro de ABYA. Portanto, o mundo existe apenas pela bênção do Criador, e só esta bênção pode iluminar a distinção entre o bem e o mal, ou mais precisamente, entre aquilo que traz o bem a uma pessoa e aquilo que atua em seu detrimento.
Apenas com a bênção do Criador se pode distinguir as forças puras das forças impuras e superar as impuras ao longo de todo o caminho da vida em direção ao fim da criação. Isto demonstra claramente se alguém se está a enganar a si próprio ou se está verdadeiramente a avançar para os mundos espirituais.
Cada força no domínio das forças impuras do mal existe apenas porque recebe sustento de uma força correspondente, mas oposta, àquela que existe no domínio das forças puras. A única exceção é a força derivada da bênção do Criador.
Assim, este mundo não poderia ter sido criado com qualquer força exceto aquela que provém da bênção do Criador. Sem se diminuir no processo, esta Força emana do Criador e permeia todo o espectro dos mundos, alcançando até ao estágio mais baixo dos mundos – o nosso.
Esta Força é capaz de retificar as criações, dando-lhes a força para se melhorarem e começarem a ascender espiritualmente. Foi com a ajuda desta Força que o universo foi criado; por isso, as forças impuras e egoístas não podem diminuir o seu poder nem usá-lo em seu próprio benefício, uma vez que as forças impuras têm efeito apenas onde as forças puras são fracas.
Portanto, a Força absolutamente pura ajuda-nos a distinguir entre pensamentos puros e impuros, pois assim que os nossos pensamentos se afastam do Criador, o poder da Força da bênção desaparece.
Os sons das letras (nekudot) simbolizam o derramamento da Luz, a perceção do Criador. Qualquer perceção do Criador, qualquer sensação espiritual, compreende dez sefirot. A partir da mais alta destas (Keter), os sons correspondem à seguinte gradação: 1 - kamatz; 2 - patah; 3 - segol; 4 - tseireh; 5 - shva; 6 - holam; 7 - hirek; 8 - kubutz; 9 - shuruk; 10 - sem som, ou seja, correspondente a Malchut, o último estágio da perceção, que nunca se torna preenchido.
Por vezes, no processo de avançar em direção ao objetivo de nos aproximarmos do Criador, sentimos-nos subitamente fracos, pois carecemos de conhecimento da Cabala e somos incapazes de realizar atos altruístas. Em vez disso, os nossos pensamentos estão apenas preocupados com o nosso sucesso neste mundo.
Então, caímos em desespero e dizemos a nós próprios que a capacidade de nos aproximarmos do Criador foi dada a pessoas especiais, com poderes especiais desde o nascimento, bem como qualidades, pensamentos e desejos apropriados a esse objetivo, e cujos corações anseiam pela Cabala e pelo autoaperfeiçoamento.
Mas depois surge outro sentimento, a consciência de que todos têm um lugar preparado junto do Criador, e que todos, mais cedo ou mais tarde, vão merecer prazeres espirituais ao aderirem ao Criador. Então, erguer-nos-emos do nosso desespero e tomaremos consciência de que o Criador é "Todo-Poderoso" e planeia o caminho de cada um, sabe o que cada um de nós sente, guia-nos e espera que nos voltemos para Ele com um pedido para nos aproximarmos Dele.
Depois, vamos recordar que mais de uma vez dissemos isto a nós próprios, mas nada mudou. No fim, permanecemos imersos em pensamentos sobre a nossa fraqueza e insignificância desprezíveis. Mais tarde, percebemos que este sentimento nos foi enviado pelo Criador para que o possamos superar.
Então, começamos a trabalhar na nossa melhoria, usando toda a vontade que possuímos. Subitamente, recebemos da condição futura à qual aspiramos. Isto significa que a Luz do estado futuro brilha ao longe, pois não pode brilhar dentro enquanto os nossos desejos permanecerem egoístas por natureza. A Luz (prazer espiritual) não pode entrar e brilhar (preencher-nos) em tais desejos.
Enquanto criações, somos uma essência concentrada de desejos egoístas e somos conhecidos como seres humanos.
O Criador, por outro lado, está totalmente afastado de qualquer coisa egoísta. Portanto, regressar ao Criador, aderir a Ele e tomar consciência Dele resultam de nos tornarmos equivalentes a Ele em forma. Tal regresso ao Criador é chamado de "regresso superior".
Esta é a razão pela qual um regresso ao Criador, uma fusão com o Criador, uma consciência do Criador, só pode ser considerado como concordar com Ele em certas qualidades. É este regresso ao Criador que é conhecido como tshuva.
Podemos determinar que tal regresso foi alcançado apenas se o próprio Criador "testemunhar" isso. Qual é este testemunho? É que agora temos a capacidade de sentir constantemente a Sua presença, o que torna possível estar com o Criador em todos os pensamentos.
Deste modo, a pessoa pode libertar-se dos desejos do corpo.
Apenas nós, enquanto indivíduos, podemos sentir se, de facto, regressamos ao Criador.
A força ganha quando se percebe o Criador, permite-nos regressar gradualmente ao Criador por completo e alterar todos os desejos egoístas para desejos altruístas.
Quanto mais desejos "maus" possuímos no início do nosso caminho, mais autoaperfeiçoamento podemos empreender e, consequentemente, mais perto podemos chegar do Criador. É por isso que nunca devemos lamentar as nossas más qualidades, mas sim pedir a sua correção. Devemos adotar este modo de pensar sempre que pensamentos de inutilidade nos vierem à ideia.
Todos estes pensamentos são despertados em nós como resultado de nos sentirmos distantes do Criador, e o Criador envia-nos estes sentimentos, e não a outros, mas apenas se estivermos prontos para os receber. Outros não se consideram maus nem percebem o seu egoísmo. Pelo contrário, estão convencidos de que são justos.
Estes pensamentos não são enviados pelo Criador para nos fazer sofrer ou cair em desespero, mas sim para nos encorajar a clamar ao Criador, exigindo que nos liberte de nós próprios e das nossas fraquezas.
Sempre que nos sentirmos novamente inúteis e fracos – tendo já experienciado os mesmos sentimentos no passado, lembraremos que não precisamos de voltar a esses sentimentos de fracasso e derrota. Devemos recordar que, cada vez que passamos por este processo, atravessamos novas correções, que se acumulam até que o próprio Criador as reúna.
Todos estes sentimentos negativos nossos em relação à nossa distância do Criador, a nossa insatisfação com o nosso caminho espiritual, as nossas queixas sobre os muitos estados de impasse: experienciamos tudo isto na medida necessária para que possamos merecer a consciência do Criador e os prazeres que d’Ele emanam. É então que as "portas das lágrimas" se abrem, e é apenas através delas que podemos entrar nos salões do Criador.
Mesmo que nos sintamos sobrecarregados pelas reações poderosas e pela teimosia dos nossos egos, não devemos decidir que o Criador não nos deu força suficiente para lidar com eles, ou que nascemos sem talento, paciência, serenidade e agudeza de espírito. Tampouco devemos lamentar que o Criador não nos tenha dado as condições apropriadas para nos corrigirmos, sendo assim incapazes de realizar o que outra pessoa poderia ter feito.
Também nos é proibido decidir que estes sofrimentos são resultado dos nossos pecados anteriores, ou que este é "o nosso destino", ou que ações numa encarnação passada nos levaram a este estado. É-nos igualmente proibido desistir da esperança e não fazer nada, pois, se usarmos adequadamente a força mínima e os talentos que temos, seremos muito bem-sucedidos.
Precisaremos de cada característica que o Criador nos deu, mesmo a mais inferior, tanto hoje como no futuro, para alcançar o nosso objetivo: a correção da alma. Este processo é semelhante a plantar uma semente. Se for plantada em solo fértil e devidamente cuidada, a semente vai germinar, crescer e dará os seus frutos. Portanto, precisamos de um bom mentor e de um bom solo (ambiente) para que todas as nossas características se desenvolvam e se equilibrem, com cada característica combinando-se para criar uma relação adequada que nos ajude a alcançar o nosso objetivo principal.
Cada questão que é despertada em nós é enviada pelo Criador, que aguarda a resposta correta da nossa parte. A resposta às questões do corpo e do intelecto, as questões egoístas como "Para quê?" e "O que ganho com isso?", tem apenas uma resposta – uma resposta que o corpo não compreende: "É a Vontade do Criador que eu O alcance desta forma."
Todas as palavras da Cabala e todos os conselhos que ela oferece dizem respeito a uma única questão: como podemos alcançar o Criador e unir-nos a Ele. Todas as nossas carências provêm da nossa incapacidade de sentir a grandeza do Criador. Tendo apenas começado a aspirar aproximar-nos d’Ele, já queremos experienciá-Lo nos nossos sentidos.
Mas isso é impossível até que tenhamos uma tela (masach) que recuse a Luz do Criador. Isso existe enquanto não tivermos vasos de doação. E enquanto não tivermos essas qualidades de doação, só podemos ter uma sensação do Criador à distância, o que é chamado de "Luz circundante", que pode brilhar ao longe sobre quem ainda está distante em qualidades das do Criador.
A Luz circundante é sempre maior do que a Luz interior, que é obtida com a ajuda de uma Tela [Masach], desde que se possuam certas qualidades altruístas. A Luz Circundante é o próprio Criador, enquanto a Luz interior (a alma) é apenas aquela "parte" do Criador que a pessoa pode adquirir após melhorar as suas próprias qualidades até certo nível.
Então, como podemos receber a Luz do Criador quando ainda não corrigimos as nossas disposições? A resposta é simples: apenas intensificando a iluminação da Luz Circundante. Ou seja, alcançaremos isto apenas aumentando a sublimidade e a importância do Criador aos nossos olhos, ansiando constantemente por sentir o Criador como a fonte de toda a existência e de tudo o que é feito.
Devemos compreender que tudo o que nos acontece é um ato de Deus, e que não há nada no mundo além d’Ele. Todos os nossos esforços devem concentrar-se nisto: não pensar que o que nos acontece é por acaso, destino, consequência das nossas ações anteriores ou vontade de outros. Devemos esforçar-nos por não esquecer o Criador.
Em nenhuma circunstância devemos interpretar o texto de qualquer seção da Bíblia (Os Cinco Livros de Moisés) segundo as nossas próprias perceções, comparando a descrição dos acontecimentos com os acontecimentos do nosso próprio mundo.
Por exemplo, como escrevi nos meus livros anteriores, "o malvado Lavan" mencionado na Bíblia é o nível mais elevado da alma preenchido com a luz do Criador. "Faraó" é um símbolo da totalidade do nosso egoísmo.
Outro exemplo pode ser encontrado na Bíblia, onde se relata como uma certa pessoa chamada Ptachia entrou numa cidade e reuniu à sua volta pessoas vazias, e todos eles foram com ele para o deserto. O nome Ptachia deriva do verbo "liftoach" (abrir) – uma pessoa que abre os olhos das pessoas.
Ele reuniu todas as pessoas "vazias" – pessoas que sentem um vazio nas suas vidas. "Levou-as da cidade para o deserto", abriu o deserto nas suas vidas para que, como está escrito na Bíblia: "Lech acharai ba midbar."
"Lech" (Vai), diz o Criador à pessoa, "acharai ba midbar" (atrás de mim no deserto), com a sensação de que a tua vida sem a perceção do espiritual é como um deserto sem uma gota de água, e que a pequena centelha de redenção da sensação de vazio te vai parecer como "uma fonte fresca na tua alma exausta".
Um outro exemplo encontra-se na Hagadah de Pesach (história) sobre o êxodo do Egito, da escravidão espiritual de Faraó, o nosso egoísmo. "Faraó morreu": finalmente, a pessoa vê que o seu egoísmo não é para o seu bem, que o mata e o obriga a servi-lo toda a vida. Este princípio, agora, aos seus olhos, "morre". E enquanto não reconhecer que o seu egoísmo é o seu único inimigo, pensa que a sua vida e servitude no Egito (cativeiro dos desejos do corpo) era uma condição boa e favorável. E mesmo depois, ocasionalmente (durante as descidas espirituais), ele chora pelos "pratos de carne e pão" que tinha no Egito, ou seja, que serviam o seu egoísmo em abundância.
Enquanto Faraó (o egoísmo no coração da pessoa), o rei (que governava todos os pensamentos e desejos da pessoa) do Egito estava vivo, ele ditava contra a vontade da pessoa quais seriam todos os seus desejos e ações. Diz-se que esta pessoa está "no exílio (prisão) do Egito", cativa de vários desejos egoístas (‘mitzraim’ [Egito] derivando das palavras mitz-ra – "uma concentração de mal").
Nós próprios não somos capazes de entender que a natureza que nos governa é má. E isto só acontece enquanto o Criador ainda não criou o bem para a pessoa de "E eis que Faraó morreu".
Ele dá-nos essas experiências de vida que nos permitem reconhecer que o egoísmo é o nosso inimigo. Só então este símbolo do mal morre, e sentimos que somos incapazes de existir como antes, a trabalhar para nada.
"E os filhos de Israel gemeram por causa da servitude e clamaram", fizeram-no apenas após perceberem que nem sequer conseguiam mover-se sem algum benefício egoísta para si próprios, e ainda não tinham adquirido uma natureza espiritual e altruísta.
"E o seu clamor por ajuda,  da sua servitude, elevou-se até Deus, e Deus ouviu a nossa voz": isto acontece apenas se a pessoa clama verdadeiramente das profundezas da alma, e isso só é possível se a pessoa atingiu os limites extremos da paciência e do sofrimento.
Só então o Criador envia ajuda, e essa ajuda chega sempre inesperadamente. Um indivíduo nunca pode saber de antemão qual será a última lágrima; todas as lágrimas devem ser derramadas como se fossem a última. Quanto à ajuda do Criador – "yeshuat haShem keheref ay’in" – ela surge subitamente e sempre de forma inesperada!
O Zohar é considerado por muitos um ensinamento moral baseado na Cabala, uma vez que está escrito na linguagem dos mandamentos, prescrevendo o que um indivíduo deve fazer. É evidente que, ao definir o livro do Zohar desta forma, as pessoas tentam negar a sua essência mística e oculta.
Os autores do Zohar escreveram este livro, que trata apenas da composição e do funcionamento dos mundos espirituais, numa linguagem deliberadamente escolástica e legalista. Isto foi intencional para não deixar dúvidas no intelecto dos leitores de que o principal propósito da Cabala não é a sabedoria em si, mas o "dispensador da sabedoria". Na verdade, o objetivo principal da Cabala e das leis espirituais é desenvolver a nossa necessidade pelo Criador e fazer com que desejemos aproximar-nos d’Ele nas qualidades da alma.
Todos os obstáculos que encontramos no nosso caminho em direção ao Criador, para entrar no reino espiritual, são, na realidade, sinais de que nos estamos a aproximar do Criador, das portas do espiritual. Isto porque não há situação mais distante do Criador do que quando não pensamos de todo na existência do reino espiritual, ou somos incapazes de querer experienciá-lo.
Quando nos sentimos distantes do reino espiritual, é porque o Criador nos permitiu tomar consciência do nosso verdadeiro estado, despertando assim em nós um desejo de proximidade com Ele. E se estes sentimentos de distância do Criador não fossem despertados em nós, não teríamos qualquer possibilidade de começar a aproximar-nos d’Ele.
Portanto, estes sentimentos de distância são um sinal do início da aproximação. E assim acontece ao longo de todo o caminho de avanço em direção ao Criador: enfrentamos constantemente todos os tipos de obstáculos. Na realidade, esses obstáculos não são mais do que o Criador a ajudar-nos, despertando em nós sentimentos de raiva e insatisfação com o nosso estado presente, para nos levar a pedir-Lhe que o mude.
Todos os obstáculos que devemos superar para nos aproximarmos do Criador são necessários para nos habituarmos a seguir o caminho do distanciamento, reconhecendo o nosso egoísmo e separação do Criador. Ainda assim, este sentimento não deveria realmente alterar as nossas ações.
Em vez disso, devemos reconhecer previamente que este sentimento revela o nosso verdadeiro estado e que o estado anterior não era melhor do que o atual, embora não tivéssemos consciência disso na altura. E assim prossegue, até deixarmos de nos focar nas nossas preocupações com a nossa condição e as substituirmos por pensamentos e desejos concentrados num único desejo: preocuparmo-nos apenas com a forma como o Criador nos vê.
Este desejo deve determinar todas as nossas ações e pensamentos. E o que o Criador deseja ver em cada um de nós torna-se claro à medida que se estuda a Cabala e se seguem todas as orientações das leis espirituais para alcançar este objetivo final. Então, todas as leis espirituais tornam-se uma ferramenta para a unificação com o Criador.
Até começarmos a medir todas as nossas ações e pensamentos pelos desejos do Criador, estamos, na verdade, a medir todas as ações pelos desejos de outros que nos impõem a sua vontade, definindo assim os nossos pensamentos e ações. Nunca estamos livres para agir por nós próprios.
Ou somos influenciados por outros que determinam o nosso comportamento e ações, ou os nossos pensamentos e ações são ditados pela vontade do Criador. Nunca podemos agir em liberdade absoluta. A ocultação do Criador de nós é feita para nosso próprio benefício.
Tal como no nosso mundo, todo o objeto não totalmente explorado nos atrai mais do que um objeto completamente examinado, a ocultação do mundo espiritual é indispensável para nos induzir a aumentar o nosso desejo de nutrir um sentido de importância em alcançar a compreensão do mundo espiritual.
Nunca somos verdadeiramente capazes de compreender a grandeza do Criador e dos mundos espirituais que constituem uma revelação parcial do Criador. Mas precisamente devido à Sua ocultação, ou à medida em que o Criador nos concede um sentido de ocultação e distância, o nosso desejo de perceber o Criador é despertado, assim como a importância de nos esforçarmos para entender o que está oculto.
Por outro lado, o nível de ocultação é determinado pela necessidade particular de uma pessoa em alcançar o que está escondido. Assim, gradualmente, toma-se consciência da importância de alcançar o que está oculto, até que se começa a sentir afastado do objeto do seu desejo apaixonado.
O caminho para alcançar o que está escondido através da Cabala é diferente de qualquer outra experiência neste mundo. Por exemplo, quando alguém é honrado, isso enche o ego e, consequentemente, causa grande dano à alma. O dano é considerado tão grande que pessoas justas proeminentes que ganharam imensa popularidade e adquiriram seguidores consideraram que tal fama tinha sido, na verdade, um castigo do Criador.
Por outro lado, há aqueles grandes que o Criador deseja proteger para que não percam nem o mínimo do seu nível espiritual. A estes, o Criador envia não apenas seguidores, mas também aqueles que os odeiam, os invejam, se opõem às suas ideias e estão sempre prontos a difamá-los. Assim, o Criador equilibra o louvor e a honra recebidos por estes grandes com o sofrimento que experienciam às mãos dos seus contemporâneos.
É difícil para quem ainda não entrou no reino espiritual e ainda não percebeu a força e os desejos espirituais manter ações e pensamentos na direção certa. Em contraste, é fácil e natural para a pessoa agir de acordo com a natureza dos mundos espirituais se essa pessoa tiver recebido força espiritual e entrado no reino espiritual, adquirindo assim uma disposição superior.
Na altura de uma descida espiritual, todos os feitos espirituais anteriores desaparecem.
O desejo de servir o Criador e de se reunir com Ele, o desejo de lutar consigo próprio e de permanecer apenas no estado de ascensão espiritual – tudo isso desaparece. Mesmo a memória desses feitos espirituais desaparece, assim como a consciência de que pode existir um desejo de ascensão espiritual.
A pessoa sente que, se essas coisas realmente existem, é apenas por pensamentos elevados e exaltados que elas podem ser mantidas, enquanto se protege da multidão de prazeres mesquinhos e menores deste mundo. Mas a maioria das pessoas comuns, às quais se sente pertencer nessa altura, tem outras preocupações e objetivos neste mundo além de anseios espirituais.
E como pode uma pessoa simples como eu, pergunta-se, sequer sonhar em ter um vínculo com o Criador, quanto mais uma ligação estreita com Ele? A possibilidade em si parece absurda e remota.
É de momentos como estes que se disse: "Onde encontrares a grandeza do Criador, encontrarás também a Sua humildade", pois o Criador dá a cada uma das Suas criações a possibilidade de se unir a Ele. E após o passar de algum tempo, quando aqueles que estavam desanimados voltam a elevar-se espiritualmente, nunca devem esquecer este estado de declínio moral, para que possam verdadeiramente apreciar o estado altamente espiritual de aspirar à união com o Criador, a dádiva pessoal e individual do Criador.
Nesse caso, não haverá necessidade de voltar a experienciar este estado de declínio espiritual, porque, através de um trabalho constante sobre si próprio, através da elevação da fé acima da razão, através do estudo e da observância de uma ordem estabelecida de ações e pensamentos, a pessoa vai criar assim um vaso espiritual para uma ascensão espiritual gradual.

O Caminho da Cabala

O caminho desejável da ascensão espiritual é o caminho da Cabala. O caminho do sofrimento aguarda-nos apenas se não houver outra forma de nos impelir a alcançar a perfeição. Como foi dito anteriormente, o caminho da Cabala é uma oportunidade dada do Alto a cada um de nós para criar em nós mesmos os desejos necessários ao crescimento espiritual, demonstrando, através de ascensões e declínios espirituais, que a Luz espiritual é prazer e a sua ausência é sofrimento.
Deste modo, começamos a desejar a Luz, a ascensão espiritual e a perceção do Criador. Sem primeiro recebermos a Luz espiritual superior e depois ela nos ser retirada, não podemos sentir um desejo por essa Luz.
Quanto maior for a Luz inicialmente enviada pelo Criador e depois "retirada", maior será o nosso desejo de a receber novamente. Este caminho é conhecido como "o caminho da Cabala", ou o caminho da Luz. Mas existe também "o caminho do sofrimento", quando alguém procura uma forma de escapar ao sofrimento insuportável que constantemente atravessa a sua vida, e não de um desejo de restaurar prazeres perdidos.
Com o caminho da Cabala, desperta-se o desejo de sermos preenchidos pela Luz espiritual como fonte vital de redenção. Ambos os caminhos conduzem a um só objetivo, mas um atrai pelo prazer e pela perfeição que estão à frente, e o outro empurra por trás, incitando à fuga da dor.
Para que o ser humano possa analisar fatores externos e sensações internas, são-lhe dados dois meios de perceção: o amargo e o doce – percebidos pelo coração, e o falso e o verdadeiro – percebidos pelo intelecto.
A realização espiritual não pode ser apreciado pelo coração, pois é absolutamente contrária à sua verdadeira natureza. É por isso que esta realização é sempre percebida como amarga, enquanto qualquer prazer pessoal é sentido como doce. Por esta razão, o trabalho sobre si próprio na reorientação dos próprios desejos é considerado o trabalho do coração.
O trabalho do intelecto é de uma natureza completamente diferente, porque não podemos confiar no nosso próprio intelecto e lógica para analisar os acontecimentos à nossa volta. Nesse caso, somos forçados, apesar de nós mesmos, a depender do intelecto egoísta e natural.
Não conseguimos libertar-nos dele porque cada um de nós foi criado assim pelo Todo-Poderoso. Por isso, há apenas um caminho: afastarmo-nos completamente da inclinação habitual de analisar o que nos rodeia e, em vez disso, aceitar os conselhos dos sábios, expostos nos livros da Cabala e explicados por professores que alcançaram o nível espiritual de consciência.
Se formos capazes, com a ajuda do Criador, de fazer o menor esforço para analisar através da fé, em vez da razão, e de discernir com o coração a amargura do egoísmo, ser-nos-á imediatamente enviado um entendimento espiritual do nível alcançado, que inclui tanto a Luz espiritual como a força (Tela - Masach).
O Criador revela então o próximo estágio inferior de egoísmo, que antes estava oculto, porque, se compreendêssemos de imediato toda a extensão do nosso próprio egoísmo, não teríamos força para o superar. Em vez disso, certamente nos sentiríamos desanimados perante a tarefa esmagadora que temos pela frente.
No entanto, devemos perceber que este ego monumental sempre esteve dentro de nós desde o início, mas estava escondido e é revelado gradualmente, à medida que o Criador nos dá a capacidade de o corrigir e a força para o fazer. É por isso que aqueles que ascendem aos níveis espirituais, superando gradualmente a "própria" razão, se sentem cada vez mais perplexos e densos em relação à orientação dos sábios nos livros cabalísticos e dos instrutores cabalistas.
Mas, na medida em que diminuímos a importância do nosso "próprio" entendimento, é-nos concedido um entendimento superior. No final, em vez de nos tornarmos mais confusos ao afastarmo-nos da lógica egoísta deste mundo, tornamo-nos incomparavelmente mais sábios.
Se ainda não alcançamos um entendimento superior, ou não alteramos a nossa forma de análise, não começámos a sentir a doçura, em vez da amargura, dos pensamentos não egoístas, ou não começámos a ver a verdade da fé em comparação com a falsidade do intelecto ligado à natureza deste mundo, podemos ainda progredir através de um método de análise já corrigido, derivado dos nossos professores, escutando e seguindo o exemplo do professor em todas as coisas. Aí reside o conselho dos sábios: se apenas um único cabalista, possuidor do verdadeiro entendimento espiritual da mente e do coração, guiar a humanidade, todos poderão alcançar o objetivo da criação não pelo caminho do sofrimento, mas pelo caminho fácil e indolor da Cabala!
Por outro lado, o infortúnio e os falhanços constantes serão a nossa sorte se aqueles que foram escolhidos para percorrer este caminho em primeiro lugar, com os quais o Criador primeiro ajusta todas as contas e dos quais mais se exige, tiverem escolhido como seus líderes aqueles que não compreendem o Seu propósito superior ou o desígnio do Seu domínio.
Somente durante guerras, catástrofes ou outros grandes infortúnios, quando parece que os nossos problemas não podem ser resolvidos, é que todos vemos claramente a mão do Criador e a Sua ajuda. Mas isto acontece apenas em momentos críticos em que nos encontramos, pois recusamos adquirir e usar o conhecimento cabalístico para reconhecer a Providência Divina no mundo.
Por que nascem as pessoas com diferentes capacidades para perceber as forças mais subtis ao nosso redor, bem como com diferentes capacidades para compreender de forma prudente e lógica a natureza das coisas? E de quem é a culpa pela pessoa não ter sido criada da mesma maneira que os génios, aqueles de pensamento profundo e emoções intensas? Por que razão, ao nascermos, recebemos do Criador desejos e capacidades mentais e espirituais desiguais?
Os indivíduos nascidos com grandes aspirações, corações amplos e mentes aguçadas são referidos na Bíblia como “os inteligentes”, porque são capazes de receber o entendimento mais elevado. Por outro lado, aqueles que nascem com capacidades mentais e espirituais limitadas são, na Bíblia, chamados de “povo insensato”. Mas, dado que cada alma tem o seu propósito especial pelo qual “desceu” a este mundo, ninguém deve envergonhar-se das tendências particulares com que nasceu.
Tampouco devemos envergonhar-nos dos nossos maus pensamentos, pois também eles nos foram enviados pelo Criador.
Contudo, devemos prestar especial atenção e estar conscientes de como reagimos aos maus pensamentos, se os combatemos ou os seguimos cegamente, se nos corrigimos – cada um na medida das capacidades com que nasceu – e do que fazemos para nos corrigirmos.
É disto que cada um de nós deve envergonhar-se e é por isto que cada um terá de responder perante o Criador. Ainda assim, como pode uma pessoa insensata alcançar alturas espirituais? O Criador disse: “Eu criei os sábios e criei os insensatos. E coloquei os sábios em cada geração para ajudar os insensatos, para que, ao ligarem os seus corações aos que ascendem, também eles possam alcançar uma união completa Comigo.”
Por que são necessários os insensatos neste mundo? Afinal, comparada com os poucos sábios do mundo, há uma multidão avassaladora de insensatos!
A razão reside no facto de que cada qualidade espiritual requer o seu próprio portador distinto. As pessoas com capacidades espirituais limitadas são os portadores do egoísmo. Os sábios, por seu lado, desejando ascender infinitamente no seu serviço ao Criador e tendo corrigido o seu próprio egoísmo, precisam de ajudar os insensatos a trabalhar o egoísmo destes.
Para continuar a ascender, os sábios devem absorver continuamente o egoísmo “alheio” e corrigi-lo. Assim, tanto os insensatos como os sábios precisam uns dos outros.
Mas, como as massas só podem oferecer aos sábios o seu egoísmo insignificante, composto por um desejo pelos prazeres mesquinhos e transitórios deste mundo, por cada sábio neste mundo existem milhares de milhões de insensatos.
Ainda assim, se os insensatos agirem de acordo com as diretrizes dos sábios, seguindo-os conscientemente em tudo o que fazem, todos poderão alcançar o objetivo da sua existência: a unidade absoluta com o Criador.
Embora o trabalho espiritual de elevar o altruísmo acima do egoísmo seja realizado no coração, e o de elevar a fé acima das asserções do intelecto seja realizado no intelecto, ambos dependem da nossa rejeição do intelecto que nos foi dado ao nascer, bem como da rejeição da auto satisfação e da autoafirmação.
Isto porque, mesmo ao trabalhar para fins altruístas, ainda se prefere ver e saber a quem se dá e quem recebe os frutos do nosso esforço – e, nesse caso, não se tem nada além da fé na existência do Criador e da fé de que Ele está a aceitar os frutos do nosso trabalho.
Aqui encontramos a noção da unicidade do Criador, de acordo com o princípio de que “Não Há Nada Além Dele”. Devemos reconhecer o Criador como Aquele que envia tudo o que sentimos e percebemos nos nossos intelectos, levando-nos a uma linha particular de pensamento, que por sua vez nos conduz a certas decisões e resoluções.
Somente após reconhecermos tudo isto podemos ganhar uma perspetiva correta sobre tudo o que acontece. Então, podemos corrigir os nossos desejos e pensamentos de acordo com o desígnio do Criador.
A Cabala, na sua totalidade, concentra-se no Criador e nas Suas ações. Por esta razão, a Cabala é designada pelos nomes do Criador. Tal como o nome de uma pessoa indica a quem se refere, cada palavra da Cabala é um nome do Criador, pois expressa a Sua ação e indica o que Ele nos envia em determinado momento.
A Cabala fala de nós como sendo uma parte do Criador que Ele afastou de Si próprio, tendo-nos dotado de egoísmo. Por esta razão, as nossas almas são compostas por duas partes opostas. A primeira destas é a parte divina, que exibe o seu próprio desejo de perceber o Criador (em alguns de nós), levando assim as pessoas a começar a procurar algo espiritual para se realizarem interiormente. Ao mesmo tempo, os prazeres perseguidos por outros ao nosso redor já não satisfazem aqueles que buscam a realização espiritual.
A segunda parte da alma é aquela natureza egoísta especialmente criada, que as pessoas experienciam em toda a sua plenitude: o desejo de possuir tudo, de saber tudo, de fazer tudo, de ver o resultado de todas as suas ações, ou seja, de ver uma parte do “eu” em tudo o que as rodeia. A parte egoísta da alma é a única parte que foi criada, pois a parte altruísta da alma é uma parte do próprio Criador. Tendo retirado o Seu desejo de Si próprio e tendo-o dotado de egoísmo, Ele assim afastou essa parte de Si, e ela tornou-se a alma, uma criação separada Dele.
A alma é considerada uma criação precisamente porque contém uma parte de algo novo – o seu egoísmo – uma qualidade que não existia antes, pois nada disso existe dentro do Criador. É com a noção da alma, que consiste numa parte do Criador e numa parte do sentimento egoísta recém-criado de “receber tudo em si própria”, que a Cabala lida. É da alma, e não do corpo, que a Bíblia fala, porque o corpo, feito de carne e osso, é como a carne e osso dos animais, e o seu fim é a decomposição e o retorno aos elementos deste mundo.
Sentimo-nos como corpos porque não percebemos as nossas almas.
Mas, à medida que começamos a perceber a alma, a sensação do corpo físico, dos seus desejos e das suas dores, diminui, enquanto a alma se afirma cada vez mais. Quando avançamos mais no caminho espiritual, deixamos de sentir os desejos do corpo por completo, porque prestamos atenção apenas à alma – a parte do Criador dentro de nós.
Assim, o “corpo” começa a representar os desejos espirituais, e não os desejos da carne e dos ossos, que quase já não sentimos.
A Bíblia não fala dos nossos corpos físicos, da massa de carne e osso, mas das duas aspirações da alma – do desejo da parte divina de perceber o Criador e de se unir a Ele, e do desejo da parte egoísta voltada para a auto satisfação, a saciedade de si própria e a perceção de si, em vez do Criador.
Ambas estas aspirações são conhecidas na Cabala como “o corpo”. Isso refere-se tanto ao corpo egoísta quanto ao corpo físico, ou seja, o corpo do nosso mundo, pois apenas o nosso mundo é caracterizado pelo ego, e ao corpo espiritual, pois os desejos altruístas são os desejos do Criador, característicos do mundo espiritual.
Em todos os casos, a Bíblia descreve como as nossas almas são afetadas em diferentes contextos e circunstâncias. Trata também dos nossos desejos, focando-se em como o Criador os altera, e em como cada um de nós pode alterá-los, ou melhor, como podemos pedir-Lhe que os altere, já que nós mesmos somos incapazes de os mudar.
Mas o principal desafio do principiante é agarrar-se com força de vontade e concentrar-se no facto de que, apesar da multidão de pensamentos e desejos, todos eles emanam do Criador; todos esses pensamentos e desejos, tão amplamente diferentes e, por vezes, tão baixos, são enviados pelo Criador.
O Criador faz isso para que, apesar de todos os obstáculos, o indivíduo persista em manter o vínculo com o Criador, preservando a fé de que todos esses pensamentos e desejos são enviados por Ele. Assim, lutar contra eles deve fortalecer a nossa fé de que tudo emana do Criador.
À medida que reforçamos esta convicção em nós próprios, podemos alcançar um nível em que este sentido esteja sempre presente, apesar dos obstáculos cada vez maiores que serão enviados pelo Criador. Estes destinam-se a fortalecer ainda mais esse mesmo sentido.
Então, a nossa fé constante na omnipresença do Criador vai combinar-se com o sentimento da Sua presença dentro de nós, e o Criador vai revestir-se em nós, determinando assim todos os nossos pensamentos e desejos. Neste ponto, tornamo-nos parte do Criador.
Devemos chegar à compreensão de que a própria sensação de distanciamento do Criador é, especificamente, o meio através do qual poderemos percebê-Lo. Estes dois sentidos são conhecidos na Cabala como kli (vaso) e ohr (luz). O primeiro destes é o desejo de experienciar o Criador, que nasce gradualmente em nós enquanto enfrentamos obstáculos (pensamentos e desejos).
Estes distraem-nos deliberadamente dos pensamentos sobre o Criador e a Sua unicidade, e fazem-nos aumentar o poder da nossa fé ao exercer a nossa força de vontade, mantendo assim os nossos pensamentos no Criador.
A Luz é, em si própria, uma resposta ao nosso desejo de receber a perceção do Criador. Quando o Criador Se reveste neste desejo da pessoa, a Luz entra no vaso, e a ordem do crescimento espiritual é tal que a pessoa desperta para o desejo do espiritual, para a perceção do Criador, para a necessidade de se descobrir a si própria, apenas sob o efeito da Luz, para a imensa sensação de vida, para a inspiração derivada de se aproximar das sensações espirituais, para a sensação de plenitude.
Mas então, invariavelmente, o indivíduo é visitado por pensamentos alheios. Sob a sua influência, começa uma descida do nível que se havia alcançado, de volta ao nível dos desejos e pensamentos comuns. E então, após algum tempo, começa-se a lamentar essas preocupações e pensamentos transitórios e mesquinhos.
Isso, por sua vez, provoca amargura e raiva contra si próprio, e por vezes até contra o Criador, que envia a essa pessoa tais pensamentos e desejos que a afastam do espiritual. É como resposta a essa sensação amarga de arrependimento sobre o próprio estado espiritual que se recebe a Luz do Alto, a sensação de se aproximar Daquele que está no Alto.
E então surge a disposição de renunciar a tudo por essa percepção do Criador, pelos sentimentos de segurança, autoconfiança e eternidade que se sentem ao aproximar-se da eternidade e da perfeição transmitidas pelo Criador. Nesse momento, toda a vergonha dos pensamentos anteriores desaparece, assim como os medos de qualquer coisa neste mundo.
Quando se percebe a alma como uma parte do Criador e, portanto, imortal, e se concorda com o Criador em tudo, justificando tudo o que o Criador faz com as Suas criações, e se está pronto a negar o próprio intelecto para seguir o Criador, o indivíduo é preenchido pela Luz do Criador e torna-se um servo voluntário das perceções espirituais.
Mas, mais uma vez, após um certo tempo, é visitado por um pensamento alheio. E assim, gradualmente, após muitos ciclos de pensamentos perturbadores e ascensões espirituais, surge uma sensação tão firme de necessidade espiritual que, finalmente, se recebe a Luz sempre presente do Criador.
O Rabino Baruch perguntou certa vez ao seu avô, o Baal Shem Tov: “Sabemos que, em tempos antigos, aqueles que desejavam experienciar o Criador submetiam-se constantemente a todo o tipo de restrições, mas tu anulaste isso segundo o ditado de que, se alguém se submete voluntariamente a privações, transgride as leis espirituais e deve ser responsabilizado. Então, qual é a coisa mais importante no trabalho que um indivíduo deve fazer sobre si próprio?”
O Baal Shem Tov respondeu: “Eu vim a este mundo para mostrar o outro caminho; uma pessoa deve esforçar-se por dominar três coisas: o amor pelo Criador, o amor pelas pessoas e o amor pelo espiritual. Então, não há necessidade de privações voluntárias.”
A capacidade de agradecer ao Criador é já uma bondade concedida pelo Criador.
A benevolência do Criador está no facto de podermos amá-Lo. A Sua força está no facto de podermos temê-Lo.
Por que razão, então, um indivíduo que se esforça por se aproximar do Criador e sente que está a chegar mais perto Dele sente-se subitamente distante?
O Baal Shem Tov responde assim: “É como ensinar uma criança pequena a andar; enquanto a criança é apoiada, ela dá alguns passos em direção ao pai, mas o pai, desejando ensinar a criança a andar sozinha, afasta-se até que ela aprenda a caminhar por si própria.”
O Baal Shem Tov disse: “O trabalho de um indivíduo sobre si próprio consiste numa luta constante contra o egoísmo, uma luta até ao último suspiro, que deve resultar, vez após vez, na substituição do egoísmo pelo Criador.
“O Criador, como um grande governante, está sentado no centro do Seu palácio. Ele ergueu muitas muralhas e obstáculos à Sua volta. Espalhou dentro das muralhas do Seu palácio uma grande riqueza e concede honras e títulos àqueles que superam os obstáculos. Ao receber estes do Criador, a pessoa fica satisfeita. Mas apenas aquele que rejeita tudo, desejando estar com o próprio Criador, ganha o direito de entrar na Sua presença.”
Na natureza, há um estado transitório entre a semente e o broto, quando a decomposição completa da semente, o seu desaparecimento absoluto, é necessária. Da mesma forma, até alcançarmos o estado de negação completa do “eu”, não podemos receber a nova natureza espiritual.
O Criador gerou o “eu” humano a partir do “nada”, e por causa disso, devemos regressar do estado do “eu” ao estado de “nada” para nos unirmos ao Criador. É por isso que se diz que o salvador (Messias) nasceu no dia da destruição do Templo.
Portanto, sempre que alcançamos o estado de desespero completo, percebemos que tudo é “pó e vaidade das vaidades”. Precisamente deste estado surge um novo passo na nossa ascensão espiritual, porque neste ponto podemos renunciar a tudo.
O Maggid de Mezrich, um grande cabalista do século passado, proclamou: “Há dez regras do trabalho espiritual. Três destas regras podem ser aprendidas com uma criança pequena e sete delas podem ser aprendidas com um ladrão.”
A criança pequena:

  • é feliz sem motivo,
  • não descansa nem por um minuto,
  • exige o que quer com todas as suas forças.

O ladrão:

  • trabalha de noite,
  • tenta ganhar nesta noite o que não conseguiu na noite anterior,
  • é leal aos seus companheiros,
  • arrisca a vida para obter até as coisas mais insignificantes,
  • não valoriza o que roubou e vende-o por pouco,
  • é espancado, mas não abandona o seu caminho,
  • vê as vantagens da sua ocupação e não deseja mudá-la.

Ele também acrescentou: Há uma chave para cada fechadura, mas se a fechadura não ceder, um ladrão corajoso vai parti-la. O Criador ama a pessoa que parte o seu próprio coração para entrar na casa do Criador.
Quando aprendemos os níveis espirituais, só então nos tornamos insignificantes aos nossos próprios olhos e podemos então curvar-nos perante o Criador, sentindo que não precisamos de nada: nem da nossa própria redenção espiritual, nem de qualquer ascensão espiritual, nem da eternidade, mas apenas do Criador.
Durante um período de declínio espiritual, pode parecer que o Criador Se está a ocultar, e é-nos difícil manter a fé na Sua existência e na Sua Providência. Mas se sentimos de facto que o Criador Se oculta, então não estamos verdadeiramente a experienciar a ocultação do Criador, mas sim uma condição em que o Criador espera que façamos um esforço para avançar em direção a Ele.
O Criador é considerado O Lugar (HaMakom), precisamente porque devemos entrar Nele com todo o nosso ser, de modo que o Criador nos envolva e seja o nosso lugar de morada. (Como já foi referido, habitamos num oceano da Luz do Criador, e devemos tomar consciência deste facto.)
Durante o tempo da oração, devemos controlar constantemente para onde dirigimos a nossa atenção e esforços: para a leitura do texto, para seguir de forma estrita os fragmentos de texto num livro de orações específico; para a análise profunda do significado dos nomes e das combinações de letras; para a pronúncia distinta das palavras; para o seguimento rigoroso das intenções mentais (kavanot) num livro de orações particular; ou para o mais importante – dirigir o coração para uma ligação com o Criador.
O mais importante é a nossa intenção: uma oração para perceber o Criador! Aqueles que oram reconhecem a existência do Criador, mas aqueles que oram pela capacidade de perceber o Criador, experienciam-No!