Capítulo 14. Revelação e Ocultação
Não existe nada no mundo exceto a Luz (o Criador) e aquilo que foi criado pela Luz (o ser humano, que permanece dentro desta Luz). O ser humano pode perceber esta Luz quando há uma correspondência entre as qualidades humanas e as do Criador. Se as qualidades não corresponderem, o ser humano será incapaz de perceber a Luz – o Criador.
Inicialmente, somos colocados nas condições de um domínio explícito e completo do egoísmo, conhecido como “o nosso mundo”. Apenas através dos nossos próprios esforços podemos gradualmente despertar e cultivar em nós próprios um desejo e uma necessidade de perceber o Criador (criar um vaso para a Luz do Criador), de modo a começarmos a percebê-Lo.
Os nossos esforços devem centrar-se numa tentativa de nos corrigirmos com toda a força que possuímos, até que se torne evidente que todos os esforços para alcançar o objetivo desejado serão inúteis. Então, é o momento de nos voltarmos para o Criador com uma oração, pedindo auxílio para encontrar a redenção do egoísmo e para nos unirmos a Ele.
Este processo pode levar meses, ou até anos, se empreendermos este esforço sob a orientação de um professor-cabalista; ou pode levar várias vidas ou reencarnações (gilgulim), se tais esforços forem realizados por nossa conta, através do sofrimento.
Apenas os esforços corretos na direção certa produzirão o vaso da alma, no qual o Criador nos será revelado. Na Cabala, as razões por trás das nossas ações são conhecidas como “os pais”, enquanto as consequências das ações são chamadas “os filhos” (os atos espirituais corretos).
Não se nasce por vontade própria. Espiritualmente, é-se forçado a nascer (a receber uma alma – a Luz do Criador) pelo Criador através do sofrimento. Mas tem-se a capacidade de nascer autonomamente através da Cabala.
Não se vive por vontade própria. Se não se agir (viver) de acordo com o desejo egoísta, então a verdadeira existência espiritual eterna será a recompensa, que pode verdadeiramente ser chamada “vida”.
Não se morre por vontade própria. Se não se quiser morrer (espiritualmente) ou estar no estado de morte espiritual (sem a alma; sem a Luz do Criador), então não se deve agir de acordo com o próprio desejo.
O trabalho na linha do meio da alma começa com o trabalho na linha direita: uma vez que o seu uso é proibido (restrição, tzimtzum), a Luz da sabedoria (Ohr Hochma) mostra o egoísmo como mau (aviut); sente-se que não há ato pior do que trabalhar para o próprio benefício.
Mas o ser humano ainda não possui nem o desejo nem a força para trabalhar em benefício dos outros, isto é, para dar. Portanto, há necessidade da linha esquerda, que nos doa desejos e força altruístas.
Os órgãos espirituais de perceção, tal como os nossos cinco sentidos (visão, audição, olfato, paladar e tato), operam de acordo com um objetivo específico. O efeito da Luz da sabedoria faz-nos perceber que não há benefício pessoal em usar os cinco sentidos; ou seja, não há sentido em trabalhar para o nosso egoísmo.
Na ausência do desejo de benefício próprio, que normalmente induz os cinco sentidos a operar, experienciamos uma completa falta de energia para realizar qualquer ato, levando à letargia e à inação. Nesta fase, ainda não percebemos que o objetivo dos nossos esforços pode ser o “dar”, isto é, que as nossas ações podem ser altruístas.
Por esta razão, necessitamos da influência de outra qualidade espiritual, conhecida como a “luz vermelha”, a linha esquerda ("malchut memuteket be Bina"). Esta segunda qualidade é necessária para convencer os nossos desejos a concordarem em trabalhar altruisticamente (qualidades de Bina). Uma vez que recebemos a energia espiritual e o movimento altruísta começou, passamos a agir com uma combinação das qualidades das linhas direita e esquerda.
Como resultado, recebemos a Luz do Criador nos nossos novos desejos (a linha média) e, assim, continuamos a receber prazer da perfeição. Se estivermos prontos para receber os poderes da fé e do altruísmo, então, eventualmente, poderemos alcançar a razão suprema.
O princípio de rejeitar o benefício próprio, adotado por uma das principais religiões do mundo, e o princípio de alcançar o prazer, escolhido por outra, ambos provêm das forças impuras (egoístas) (klipot) das linhas direita e esquerda da ascensão espiritual. Assim, quando a Cabala discute o tema de impor limitações a si próprio, implica uma fase preliminar de trabalho sobre si: tentar rejeitar a ideia do benefício próprio usando a própria força de vontade.
As raízes de todos os diferentes tipos de fé, de todas as tendências espirituais, de todos os grupos e de todas as filosofias religiosas podem ser identificadas até às várias klipot. Estas rodeiam as linhas espirituais puras, esquerda e direita, que são sustentadas através do processo de apreensão (ahiza) ou através da absorção de nutrição (yenika).
Mas o objetivo de qualquer tarefa é alcançar a linha do meio, elevar-se ao infinito que não tem fim nem limite, alcançando assim a perceção do Criador, não limitada por qualidades humanas particulares.
No vocabulário espiritual, um desejo é considerado um “lugar”. A ausência de desejo é considerada “a ausência de um lugar”. Isto é semelhante a uma situação em que a pessoa declara que não há lugar no estômago para comida, pois já não há desejo de comer.
Um lugar espiritual, ou o desejo de um indivíduo de perceber o Criador, é conhecido como “o vaso” (kli) da alma, ou Shechina. Este vaso recebe a Luz do Criador ou a revelação do Criador, também conhecida como “a alma” da pessoa. O próprio Criador é conhecido como o Shochen (O que habita).
Uma vez que todos os nossos desejos estão permeados pelo nosso egoísmo (desejo de receber), a Luz do Criador está oculta. À medida que o egoísmo é gradualmente expulso dos nossos desejos, torna-se disponível um lugar maior. Um desejo não corrigido é conhecido como “egoísmo”. Um desejo corrigido é chamado “Israel”.
Quando um “lugar” é desocupado como resultado de um desejo corrigido, a Luz do Criador revela-se, mas o Criador continua a operar de forma oculta para nós. Após corrigirmos e purificarmos os nossos desejos (lugares, vasos), percebemos o processo da revelação do Criador como o aparecimento da Luz. Na realidade, porém, nenhum movimento ocorre, mas, tal como no processo de revelação de um negativo, a Luz surge gradualmente na nossa perceção.
Como não percebemos a própria Luz, mas apenas o seu efeito no nosso vaso, dirigimo-nos ao Criador pelo nome associado à Sua revelação: Shechina. Contudo, só podemos determinar a Sua Essência pelas sensações e sentimentos que Ele provoca em nós. Por esta razão, a revelação do Criador é conhecida como Shechina.
Se o Criador Se oculta, diz-se que “a Shechina está no exílio”; ou que “o Criador está escondido”. Mas se um indivíduo merecer a revelação do Criador, isso é conhecido como “o regresso do exílio”.
O nível variável com que o Criador Se revela a nós é chamado “a alma” (neshama).
Assim que conseguirmos corrigir pelo menos um dos nossos desejos num desejo altruísta, recebemos imediatamente a perceção do Criador. Assim, diz-se que a alma humana é parte do Criador.
Quando alcançarmos a etapa final da correção, o Criador preencherá todos os nossos desejos, ou seja, Ele revelar-Se-á no nível supremo para o qual planeou revelar-Se nas Suas criações. Todos os nossos desejos foram concebidos para este propósito último desde o início da criação.
Shechina é a raiz e a soma de todas as almas individuais. Cada alma é uma parte da revelação geral do Criador. Quando o Criador Se revela, Ele expressa o Seu desejo de deleitar as Suas criações. Esta é a compreensão daqueles que alcançam a perceção do Criador.
Somos incapazes de responder à questão sobre o que levou o Criador a desejar criar-nos para nos deleitar, pois esta questão trata do processo que ocorreu antes da criação. Só podemos compreender aquilo que nos pode ser revelado, ou seja, aquilo que se desenvolveu após a criação.
A etapa inicial a partir da qual começamos a compreender a criação é a perceção do prazer que emana do Criador. Por esta razão, o objetivo da criação – “o desejo do Criador de deleitar” – refere-se apenas às criações que já O percebem.
Todas as questões que dizem respeito a assuntos para além deste nível estão acima da nossa capacidade de compreensão. Devemos sempre lembrar que todo o entendimento e conhecimento humanos derivam exclusivamente da perceção pessoal.
A única coisa de que somos feitos é o nosso desejo de sermos deleitados.
Todo o nosso potencial físico e intelectual, todas as nossas capacidades e todo o nosso progresso têm o único propósito de nos permitir receber prazer de vários objetos, que continuamos a inventar, encontrar e considerar necessários, elegantes ou aceitáveis. Isto é feito com o único objetivo de podermos receber prazer constantemente.
Não podemos queixar-nos das formas ilimitadas do desejo de receber prazer. Foi suficiente para o Criador gerar um único desejo para induzir os seres humanos a sentirem-se como seres independentes (que desejam), capazes de agir autonomamente com base num único instinto – o de maximizar o nosso prazer pessoal.
Este processo ocorre com a ajuda de todas as nossas faculdades: intelectuais, subconscientes, físicas, éticas e muitas outras. Inclui também todos os níveis de memória, desde os moleculares e biológicos até aos mais altos níveis do nosso intelecto.
Eis um exemplo simples: um homem ama o dinheiro, mas está disposto a abdicar de toda a sua fortuna a um assaltante quando ameaçado de morte. Desta forma, ele troca uma fonte de prazer (dinheiro) por um prazer ainda maior (permanecer vivo).
Somos incapazes de realizar um ato a menos que tenhamos a certeza de que, como resultado desse ato, estaremos numa posição mais vantajosa. É irrelevante como o benefício será conferido. O crucial é que o nível de prazer resultante exceda o nível inicial. Só então agiremos.
Qual é, então, a diferença entre o prazer recebido do egoísmo (de receber) e o prazer recebido do altruísmo (de dar)? A diferença significativa reside no facto de que, quando recebemos prazer do egoísmo, o nosso sentimento de prazer é invariavelmente acompanhado por um sentimento de vergonha. Mas se recebemos pelo benefício do doador, então não sentimos vergonha e o nosso prazer é absoluto.
O ser espiritual original, conhecido como “a alma comum” ou “Adam HaRishon, o primeiro homem”, foi incapaz de sofrer tal transformação de pensamento quando recebeu o imenso prazer do Criador. Por isso, foi dividido em 600.000 partes (almas).
Cada parte, cada alma, recebe uma pequena porção do fardo do egoísmo, que deve corrigir. Quando todas as partes forem corrigidas, elas unir-se-ão novamente para formar “uma alma comum corrigida”. Quando tal estado for alcançado, o processo corretivo conhecido como gmar tikkun estará concluído.
Por exemplo, no nosso mundo, a pessoa pode abster-se de roubar uma pequena quantia de dinheiro porque isso representa uma quantidade insignificante de prazer. O medo da punição, combinado com sentimentos de vergonha, prevalece sobre o desejo de roubar.
No entanto, se a quantia for suficientemente grande, o impulso para a gratificação é muito mais forte do que a capacidade de resistir. Desta forma, o Criador gerou as condições para a liberdade de escolha que precisamos para superar o nosso egoísmo.
Ele dividiu a alma numa multiplicidade de partes e, em seguida, separou cada parte em numerosas fases de correção sucessivas (em que cada fase obriga a parte a revestir-se de um corpo humano). Depois, fragmentou cada estado de um ser humano num conjunto de ascensões e descidas necessárias para a procura de como alterar a sua natureza.
Se sentimos amor pelo Criador, devemos imediatamente tentar conjugar em nós próprios sentimentos de temor, para garantir que o nosso sentimento de amor não seja egoísta. Apenas se o temor e o amor estiverem ambos presentes é que a nossa aspiração de nos aproximarmos do Criador se encontra na forma perfeita.
Aqueles que experienciam um anseio pela perceção espiritual, mas não percebem o Criador, ficam preenchidos com confusão e pânico espirituais. Embora lhes seja dado o desejo de alcançar o Criador a partir do Alto, tais indivíduos não estão prontos para dar o passo independente em direção ao fim desejado.
Em vez disso, escolhem esperar que lhes seja enviado um desejo muito forte do Alto. Este servirá como um impulso para a frente. Permitirá a esses indivíduos perceberem que cada sentimento e circunstância estão impregnados do desejo do Criador de atrair a sua atenção para Ele e de os incitar a aproximarem-se d’Ele. Então, é possível detetar o chamamento do Criador.
É por esta razão que cada um de nós vê o mundo de uma forma muito pessoal e interpreta de maneira única tudo o que acontece à nossa volta. A regra de que “existem tantas perspetivas quantas pessoas” sublinha o facto de que cada um de nós é único. Ao prestarmos atenção aos nossos próprios sentimentos, podemos iniciar um diálogo com o Criador segundo o princípio de que “cada pessoa é uma sombra do Criador”.
Assim como a sombra se move com o movimento do indivíduo, e todos os movimentos da sombra apenas repetem os movimentos do indivíduo, da mesma forma, os nossos movimentos internos – os nossos desejos, aspirações, perceções, essência espiritual e visão da vida – repetem os movimentos (os desejos) do Criador.
Assim, se a pessoa experiencia subitamente um desejo de perceber o Criador, deve reconhecer imediatamente que este desejo não resultou de ações particulares, mas sim do facto de o Criador ter dado um passo em direção a essa pessoa, criando uma atração e um apelo por Ele.
No início do caminho, o Criador usa todas as oportunidades apropriadas para comunicar connosco, despertando em nós tanto um anseio como uma angústia pelas perceções espirituais. Mas, cada vez que o Criador nos concede uma atração pelo espiritual, Ele espera uma reação equivalente do nosso lado.
Portanto, se compreendermos que o vigor com que ansiamos perceber o Criador é tão forte quanto o vigor com que o Criador deseja aproximar-nos de Si, devemos tentar desenvolver e fortalecer em nós esses sentimentos. Desta forma, podemos avançar em direção ao Criador até que, finalmente, possamos aderir a Ele em todos os desejos e qualidades.
Mas, quando ainda estamos no início do caminho, não sentimos nem compreendemos o Criador. Após várias tentativas infrutíferas de avançar em direção a Ele, parece-nos subitamente que, embora queiramos aproximar-nos do Criador, Ele nos ignora.
Em resposta, em vez de aumentarmos o nosso anseio ao nível necessário para nos ligarmos ao Criador, começamos, no nosso coração, a culpá-Lo por nos ignorar. Ficamos irritados e esquecemo-nos completamente de que o Criador nos deseja exatamente na mesma medida e, por esta razão, nos deu tais anseios por Ele.
Enquanto nos faltar uma fé completa na singularidade do Criador, repetiremos inevitavelmente os nossos erros vez após vez, até que o Criador nos faça perceber que todo o nosso desejo por Ele provém do próprio Criador, e que Ele aceitará todos os esforços que exigirmos, ajudando-nos ao revelar-Se a nós, mostrando-nos a verdadeira e completa imagem dos mundos e de Si próprio.
Só podemos ligar-nos ao Criador dirigindo alegremente todos os nossos anseios, o que é chamado “com todo o coração”. Isso inclui mesmo aqueles desejos que não precisam de ser trazidos a uma equivalência de forma com o Criador.
Se conseguirmos suprimir completamente todos os desejos egoístas revelados em nós anteriormente, enquanto sentimos felicidade nos nossos corações, estabelecemos condições propícias para preenchermos os nossos corações com a Luz do Criador.
O aspeto mais importante da tarefa de autoaperfeiçoamento é alcançar um ponto em que encontramos alegria em ações que agradam ao Criador, pois tudo o que é feito para nosso próprio benefício nos afasta do Criador. Portanto, todos os nossos esforços devem centrar-se em alcançar encanto ao dirigir-nos ao Criador e em adquirir encanto nos pensamentos e sentimentos sobre Ele.
Quando nos sentimos vazios, é um momento apropriado para buscar a grandeza do Criador e encontrar apoio n’Ele. Quanto mais baixo nos sentirmos em relação a nós próprios, e de forma mais elevada percebermos o Criador, nesse nível podemos elevar-nos após pedirmos ao Criador que nos salve e alivie a situação presente.
O Criador provoca esta elevação após revelar a Sua grandeza para oferecer a força necessária para avançar. Nessa condição, precisamos do Criador e da Sua ajuda, pois a nossa razão puxa-nos numa direção completamente diferente. Portanto, os sentimentos de vazio são dados precisamente para que os sintamos, com a perceção da grandeza do Criador, chamada “fé”.
A pessoa justa é aquela que, em tudo o que sente, seja bom ou mau, justifica as ações do Criador, independentemente dos sentimentos experimentados pelo corpo, coração e razão. Ao justificar todas as sensações recebidas do Criador, é como se desse um passo em frente em direção ao Criador, chamado o passo “direito”.
Em nenhuma circunstância devemos ignorar o nosso verdadeiro estado e sentimentos, por mais desagradáveis que sejam. Mesmo que tais situações difíceis sejam necessárias, não devemos tentar anulá-las. Ao agirmos desta maneira, daríamos um passo “esquerdo” para a frente.
A perfeição no crescimento espiritual consiste no facto de avançarmos constantemente, alternando as duas condições mencionadas.
A pessoa absolutamente justa é aquela que justifica todas as ações do Criador, tanto em relação a si própria como em relação a todas as outras criações.
Um indivíduo que alcançou a possibilidade de perceber todas as sensações fora das limitações dos desejos egoístas já se separou deles e deseja apenas alegrar-se em dar. Nesse estado, uma pessoa não pode experienciar descidas espirituais, pois cada evento não é avaliado sob a perspetiva do ganho pessoal.
Assim, tudo o que acontece, acontece para o bem. No entanto, como o objetivo do Criador na criação não reside nisso, mas sim em que as criaturas beneficiem especificamente nos seus próprios sentimentos – a conquista do nível de uma pessoa justa – este não é o estado final para o ser humano.
Por isso, após a pessoa alcançar o nível de justa, é tempo de começar gradualmente a restaurar o egoísmo que foi destruído ao alcançar esse nível. Esse mesmo desejo egoísta que a pessoa justa recuperou pode ser adicionado ao desejo de fazer o Criador feliz, que foi adquirido através do trabalho espiritual.
Por causa disto, não só se pode dar prazer, mas essa pessoa também pode receber prazeres nos desejos egoístas recuperados, sempre com a intenção de proporcionar felicidade ao Criador. Esta situação pode ser comparada a um altruísta deste mundo que anseia fazer o bem aos outros, uma vez que essas qualidades estavam presentes desde o nascimento.
Na verdade, o altruísta não as recebeu do Criador como recompensa pelo trabalho sobre si próprio. De facto, é como se o altruísta nada quisesse, pois o prazer de proporcionar o bem aos outros preenche o ego. O altruísta é incapaz de agir de forma diferente.
Isto assemelha-se a uma situação em que uma pessoa é hóspede na casa de um amigo. Quanto maior for o apetite e o prazer do hóspede pelo que lhe é oferecido, maior é a satisfação recebida pelo anfitrião. Este prazer não seria recebido se o hóspede não estivesse faminto.
Mas, como o hóspede pode sentir vergonha por todo o prazer que está a receber, pode recusar mais ofertas. Ao recusar com frequência suficiente, o hóspede começará a sentir que, ao aceitar as iguarias oferecidas, está a fazer um favor ao anfitrião. Então, todos os sentimentos de vergonha desaparecerão, e o hóspede experienciará o prazer em toda a sua extensão.
Nas sensações espirituais, não há autoengano, como a pretensão de que uma pessoa justa não deseja receber prazer para si própria. Ao alcançar níveis de justiça, com a ajuda do Criador que substitui a nossa natureza egoísta por uma altruísta, a pessoa recusa verdadeiramente todo o prazer egoísta e aspira apenas a beneficiar o Criador.
Mas, quando a pessoa justa percebe que o Criador recebe prazer apenas quando as Suas criações se deleitam com os prazeres que emanam d’Ele, prazeres que não são diminuídos ou destruídos, essa pessoa é novamente forçada a voltar ao egoísmo. Desta vez, porém, com um objetivo diferente: experienciar prazer pelo benefício do Criador.
No final, o Criador e o indivíduo convergem completamente nas suas intenções e ações, pois cada parte tenta agradar a outra e, através disso, obtém prazer. Não há limites para receber prazer desta maneira.
Pelo contrário, quanto maior for a sensação de prazer experienciada, mais elevado será o nível espiritual alcançado. Há também prazer no reconhecimento da força, poder e grandeza infinitos, sem qualquer preocupação com o próprio eu.
Portanto, o nível da pessoa justa não é suficiente para cumprir o objetivo da criação. Receber prazer da luz que emana do Criador é crucial para a correção das nossas intenções: “as razões pelas quais buscamos prazer”.
A conquista do nível de ‘justo’ apenas nos permite livrar-nos dos sentimentos de vergonha que experienciamos quando recebemos prazeres do Criador. Tanto quanto o egoísmo constitui a nossa natureza neste mundo e o altruísmo é considerado uma noção utópica, eles são percebidos como opostos por aqueles que ocupam o domínio do mundo espiritual.
As dificuldades surgem da ocultação do Criador. Recebemos prazeres apenas quando satisfazemos os nossos desejos. Mas a Cabala ensina que isso é mau, e não bom para nós. Não compreendemos por que assim é, uma vez que não percebemos prazer no sofrimento, e ainda assim devemos acreditar que o sofrimento é bom para nós. Assim, cada uma das nossas ações ou pensamentos gera uma multiplicidade de deliberações.
Além disso, quanto mais próximos estamos da entrada do mundo espiritual (machsom), mais complexa se torna a situação. Apenas uma verdade se torna evidente: “Há muitos pensamentos no coração da pessoa, mas apenas o conselho do Criador será estabelecido”.
A diferença entre a pessoa que deseja elevação espiritual (ou seja, adquirir características espirituais como as do Criador) e a pessoa que cumpre a Sua Vontade por uma recompensa (como resultado da educação recebida) é esta: a última tem fé em recompensas e castigos, e por isso cumpre a Vontade do Criador.
O Criador é como um empregador que paga um salário; a pessoa é como um trabalhador que não se preocupa com o empregador, mas sim com o salário: recompensa e castigo neste mundo ou no mundo vindouro. Isso dá ao “trabalhador” a força para observar os mandamentos sem fazer a pergunta: “Por que estou a cumprir a Vontade do Criador?” A resposta é: porque o trabalhador acredita em recompensas.
No entanto, aquele que procura cumprir a Vontade do Criador sem receber pagamento em troca, pergunta constantemente: “Por que estou a fazer isto?” e “Se esta é a Vontade do Criador, por que precisa o Criador disto? Ele é perfeito e completo, então o que as nossas ações Lhe acrescentam?”
Pareceria que estas questões são apenas para a própria pessoa, que então começaria a perguntar-se: “O que ganho eu ao cumprir a Vontade do Criador?” Aos poucos, a pessoa percebe que a recompensa por cumprir a Vontade do Criador é a sua própria autocorreção, até receber do Alto a Neshama (alma) – a Luz do Criador.
A Cabala ensina que a inclinação ao mal (egoísmo) parece aos pecadores como um fio de cabelo (um pequeno obstáculo), enquanto para a pessoa justa parece uma montanha elevada.
A Cabala deve ser aplicada como se se referisse apenas a uma pessoa, em quem os pensamentos e desejos característicos são designados por vários nomes do nosso mundo.
Portanto, sob as categorias de “pecadores” e “justos” descrevem-se os estados de um único indivíduo. A ocultação refere-se não apenas à ocultação do Criador, mas também à ocultação da pessoa de si própria. Não nos conhecemos verdadeiramente a nós próprios nem as nossas verdadeiras características. Estas só nos são reveladas na medida em que somos capazes de as corrigir. (A este respeito, a pessoa é comparável a um contentor de lixo: quanto mais se procura dentro de si, maior é o mau cheiro percebido).
Por esta razão, o Criador mostra àqueles que estão apenas no início do caminho, os pecadores, que o seu egoísmo não é tão formidável que não possa ser superado. Isto é para que não percam a esperança ao verem um trabalho que não é adequado à tarefa.
Para aqueles que já estão no caminho, o Criador revela uma maior medida do mal (egoísmo) dentro deles. Isto é feito numa proporção adequada ao sentimento da importância da correção e ao poder de resistência ao egoísmo que adquiriram.
Finalmente, àqueles que desejam ser justos, o Criador revela a plena magnitude do seu egoísmo. Consequentemente, este aparece-lhes como uma alta montanha, insuperável.
Assim, à medida que a pessoa progride, o mal dentro de si é revelado cada vez mais, em quantidades corrigíveis. Por causa disto, se a pessoa se apercebe subitamente de algo novo, dentro de si, que é negativo, isso indica que agora é possível corrigi-lo. Em vez de cair em desespero, deve pedir-se ao Criador que o corrija.
Por exemplo, quando começamos a trabalhar sobre nós próprios, só conseguimos sentir 10 gramas de prazer de todos os prazeres do mundo que nos rodeia, e somos capazes de os dispensar. Depois, o Criador dá-nos um gosto por 15 gramas de prazer.
No início do nosso trabalho, devido ao nosso gosto adicional pelos prazeres, sentimo-nos mais baixos (pelo sentimento de sermos atraídos por coisas que antes não nos atraíam) e mais fracos (devido à diferença entre a força da nossa atração pelos prazeres e o poder da nossa própria resistência a eles).
Contudo, numa situação como esta, devemos dizer a nós próprios que, uma vez que o Criador acrescentou 5 gramas de prazer ao gosto pelos prazeres que recebemos do mundo à nossa volta, mas somos incapazes de nos corrigir, devemos pedir força ao Criador. Mas, quando recebemos a força para superar 15 gramas de prazer, depois recebemos mais 5 gramas de gosto pelo prazer, e mais uma vez sentimos que somos mais fracos e baixos, e este processo continua.
Transformar o Egoísmo em Altruísmo
Aquele que deseja experienciar o verdadeiro sabor da vida deve prestar especial atenção ao ponto espiritual encontrado no seu coração. Todos têm um ponto no coração. No entanto, geralmente não mostra sinais de vida nem ilumina, e por isso não estamos conscientes dele.
Numa situação como esta, é chamado de “ponto negro”. Este ponto é a semente de uma alma. A característica deste ponto é altruísta, porque é uma semente do futuro vaso da alma e da sua Luz, uma porção do Criador.
Contudo, no seu estado inicial, está escondido de nós, pois não o valorizamos, e por esta razão este estado é chamado “Galut (exílio) da Shechina” (a Presença Divina). Este estado da alma é chamado de “ponto”.
Se elevarmos a importância desse ponto acima do nosso próprio “eu”, acima das nossas cabeças, como as coroas acima das letras, desta forma tornamo-lo comparável a uma coroa nas nossas cabeças, em vez de pó aos nossos pés. Então, a Luz é emitida do centro para o corpo, e este centro potencial torna-se a fonte de força para a nossa elevação espiritual.
Assim, em vez de todos os nossos apelos por ajuda ao Criador, a nossa única prece deve centrar-se em perceber a importância de alcançar o Criador como um meio para a nossa melhoria pelo Seu benefício.
A capacidade de realizar atos de bondade (atos altruístas) não é um meio, mas uma recompensa para a pessoa que deseja assemelhar-se ao Criador.
A ordem sequencial do processo pelo qual a pessoa se afasta do egoísmo e se dirige ao mundo espiritual pode ser encontrada na Bíblia como o êxodo do Egito. O aparecimento de vasos de doação na pessoa é chamado “o êxodo do Egito”.
Contudo, os desejos altruístas (vasos de doação) significam que a pessoa prefere seguir o caminho da fé em vez do caminho do conhecimento. Sair do egoísmo só é possível quando sentimos a espiritualidade, percebemos o Criador; e a Luz da sabedoria (ohr hochma) divide o ‘Iam Suf’ (Mar Vermelho) ao meio. Neste ponto, passa-se a fronteira entre dois mundos.
Para isso, o Criador realiza um milagre. Ele dá-nos a Luz da sabedoria (ohr hochma), apesar de não possuirmos o vaso apropriado para receber a Luz. Com a ajuda desta Luz, podemos atravessar a barreira (machsom). Depois, quando o milagre passa, aqueles que entraram no mundo espiritual não regressam ao nível do nosso mundo.
Na próxima etapa, devemos adquirir um vaso para receber a Luz da Sabedoria, e isso é alcançado no árduo caminho de progressão pelo deserto espiritual até que mereçamos receber a Luz do Criador, ascendendo ao "Monte Sinai". Neste estado, cumprimos os mandamentos por força da fé acima do conhecimento, quando colocamos os nossos pensamentos e desejos abaixo da fé.
O chamado estado menor, katnut, ou seja, Malchut neste caso, refere-se apenas ao centro ou Keter ("coroa"). Nesta presença mínima, as nossas disposições egoístas malévolas não nos conseguem influenciar, porque colocamos a fé acima do conhecimento e da perceção.
Este é considerado um estado menor porque, nele, não levamos em conta o egoísmo, uma vez que não temos força para o contrariar. Esta situação pode ser comparada a um caso em que, incapazes de consumir apenas uma pequena quantidade de comida, rejeitamos a porção inteira.
Contudo, uma ligação com a Luz do Criador só pode ocorrer se formos capazes de receber essa Luz em nós próprios; ou seja, de trabalhar altruisticamente com o nosso próprio egoísmo. Ao transformarmos o nosso egoísmo em altruísmo, o vaso transformado será preenchido com a Luz do Criador.
Esse estado do nosso vaso espiritual (de egoísmo corrigido, kli) é chamado “o estado maior, gadlut”. Malchut desce de Keter para o nível em que podemos resistir à atração pelo benefício próprio e sermos capazes de receber, mas não para o nosso próprio prazer.
Receber plenamente a Luz do Criador, perceber o Criador na máxima extensão da nossa capacidade, aderir completamente a Ele, é possível apenas ao utilizarmos totalmente o nosso egoísmo ao serviço do altruísmo. Esse estado é conhecido como “o fim do processo de correção” e é o objetivo da criação.
Todas as nossas perceções são estritamente subjetivas, e a visão do mundo que nos é acessível depende inteiramente dos nossos estados espirituais e físicos internos, dos nossos humores, etc. Mas na perceção espiritual, as sensações constituem a própria realidade, pois compreendemos o presente de acordo com a nossa posição espiritual.
O nosso mundo é considerado a nossa sensação imediata. O mundo futuro é aquilo que será sentido no instante seguinte. Não existe uma dimensão de tempo, mas apenas uma mudança de sensações. Se percebermos tudo pela fé acima do conhecimento, então vivemos inteiramente no futuro.
Por exemplo, na vida comum, se possuímos um negócio, avaliamos sistematicamente o resultado do nosso trabalho e os nossos lucros. Se verificarmos que as nossas despesas e esforços não são justificados, isto é, que o lucro é inferior ao investimento, então encerramos o negócio e iniciamos um novo, porque o lucro esperado está diante dos nossos olhos.
Em nenhuma circunstância nos iludimos, mas avaliamos claramente os nossos benefícios na forma de dinheiro, honras, fama, tranquilidade e assim por diante – na forma que desejarmos que o nosso lucro assuma.
Poder-se-ia perguntar, por que não fazemos um balanço geral do resultado das nossas vidas, por exemplo, uma vez por ano, e considerar com que propósito vivemos e gastamos o ano? Contudo, se nos ocuparmos, mesmo que ligeiramente, com o nosso desenvolvimento espiritual, então por que precisamos de nos questionar sobre cada momento?
O nosso mundo é um mundo de falsidade.
Por conseguinte, os nossos corpos não querem enfrentar estas questões porque não conseguem fornecer as respostas. Na verdade, qual pode ser a nossa resposta quando o ano chega ao fim, ou quando o fim da própria vida se aproxima?
Tudo passou, o bom e o mau, e o que resta de nós? Porque trabalhamos para as necessidades dos nossos próprios corpos? Não há resposta, porque não há recompensa pela vida que passou. Por isso, o corpo não nos permite fazer estas perguntas.
A espiritualidade, por outro lado, sendo verdadeira, e a recompensa espiritual sendo eterna, coloca-nos a questão da nossa recompensa espiritual com o objetivo de nos despertar para recebermos benefícios ainda maiores dos nossos esforços. Desta forma, corrigimo-nos a um nível maior e receberemos uma recompensa eterna maior.
Por que motivo, então, nos dá o Criador ocupações falsas com a vida neste mundo? O processo de criação de um vaso espiritual é muito complexo e demorado. Acreditamos que devemos experienciar todo o espectro do egoísmo mundano, vivenciá-lo em toda a sua baixeza, e provar todos os seus falsos prazeres, até aos seus níveis mais baixos (de egoísmo).
Durante o nosso trabalho, ao aproximarmo-nos da fronteira entre os reinos físico e espiritual, acumulamos experiências até alcançarmos o reino espiritual. Este processo de aquisição de experiência não ocorre numa única revolução da vida neste mundo. Toda a informação é armazenada nas nossas almas e revelada no momento apropriado.
Até então, o processo de aquisição permanece oculto para nós, e apenas vivemos o nosso estado atual. Dado que toda a nossa essência se centra no desejo de obter prazer, o Criador concede a "vida", conhecida como “falsidade”, àqueles que ainda não estão preparados para a ascensão espiritual, para que tenham uma fonte de força para viver.
Há uma Luz que provoca a redução do vaso dos desejos, e há uma Luz que proporciona conhecimento e prazer. No fundo, é a mesma Luz do Criador, mas somos nós próprios que extraímos da Luz a qualidade particular que desejamos usar para os nossos objetivos espirituais.
“Abandona o mal e faz o bem.” A primeira etapa da correção é chamada “a realização do mal”, pois, assim que nos convencemos de que o egoísmo é o nosso inimigo mais perigoso e mortal, odiá-lo-emos e abandoná-lo-emos. Uma situação como esta torna-se agora insuportável.
No entanto, não é necessário fugir do mal, mas apenas sentir o que o mal realmente é, e depois separarmo-nos instintivamente do que é prejudicial. A nossa realização do que é mal ocorre precisamente sob a influência de atos bons – ao cumprir os mandamentos e estudar a Cabala, pois, quando estamos sob a sua influência positiva, começamos a ansiar pela perfeição espiritual e a perceber o que exatamente nos impede de viver uma vida espiritual.
A ocultação do Criador de nós, que é vivida como sofrimento, questões sobre a Providência Divina, falta de confiança e fé no Criador, e pensamentos perturbadores – tudo isto é chamado "noite". A revelação do Criador à pessoa, que é vivida como prazer, confiança na Supervisão Divina, uma sensação de conexão com o eterno, compreensão das Fontes Superiores de todas as leis da natureza – tudo isto é chamado "dia".
Enquanto o Criador ainda está num estado de ocultação, devemos trabalhar para adquirir fé no facto de que tal estado é para nosso benefício, porque em todos os estados o Criador faz apenas o que é mais útil e benéfico para nós.
Se estivéssemos prontos para receber a Luz do Criador sem nos prejudicarmos, sem dúvida o Criador Se revelaria a nós.
Mas, como somos incapazes de controlar os prazeres que já sentimos, o Criador não concede prazeres tão imensos como os da Sua Luz, pois tornar-nos-íamos imediatamente escravos deles e nunca seríamos capazes de escapar das correntes do nosso egoísmo. Por esta razão, afastar-nos-íamos ainda mais do Criador.
Cada nova geração e a sua maioria determinam o valor e a beleza das coisas, objetos, eventos e categorias. Cada geração rejeita as normas da anterior. Portanto, não existem normas absolutas; pelo contrário, a maioria em cada grupo de pessoas e cada geração dita as suas próprias normas, para que os restantes as sigam.
Por essa razão, existem sempre novas tendências e novos modelos a que se pode aspirar. Assim, tudo o que é ditado pela maioria é considerado belo, enquanto aqueles que defendem esses valores recebem respeito e honras. Consequentemente, está-se disposto a dedicar grande esforço para alcançar aquilo que a sociedade valoriza grandemente.
Como resultado, é difícil adquirir qualidades espirituais, uma vez que a maioria não considera este objetivo em alta estima, como faz com as tendências atuais. Na verdade, é assim tão importante perceber o espiritual? De facto, a espiritualidade é extremamente importante.
No entanto, se assim é, por que motivo o Criador o mantém oculto? A resposta é que, para que não o estraguemos, Ele criou um "artifício" especial chamado “ocultação”. Isto impede que toda a grandeza do mundo espiritual seja vista, dado que não podemos controlar os sentimentos que já experienciamos, conforme explicado anteriormente.
E, dado que agora está oculto de nós, só podemos confiar na fé relativamente à imensa importância de perceber o Criador. Contudo, segundo a opinião da maioria, o valor da apreciação espiritual é nulo; assim, é praticamente desprezado por todos.
Este processo ocorre apesar de ser evidente que os padrões de beleza, a ordem de prioridades, as normas de comportamento e as leis da sociedade são determinados por personalidades desprezíveis que mudam constantemente os seus princípios, demonstrando assim que carecem de substância e que as suas normas são infundadas e falsas.