Capítulo 4. Anular os Nossos Interesses Pessoais
Anular os Nossos Interesses Pessoais
Antes da criação, apenas o Criador existia. O processo da criação inicia-se quando o Criador separa uma certa parte de Si próprio para, no futuro, a dotar de determinadas diferentes características. Ao conceder a esta parte um sentido de existência própria, o Criador, essencialmente, “expulsa-a” de Si.
Esta parte que foi concedida constitui o nosso "eu". A distância entre esta parte e o Criador corresponde à disparidade nas características entre o Criador e esta parte; é percebida como "ocultação do Criador". Dado que esta parte não pode sentir o Criador, forma-se um vazio entre ela e Ele, gerado pelas características egoístas da parte.
Se o Criador desejar aproximar a parte separada de Si próprio, o escuro vazio entre ambos vai infundir uma sensação de desespero na parte. Se, pelo contrário, o Criador não desejar aproximá-la, então o vazio nem sequer é sentido. É apenas a distância entre a parte e o Criador que não é percebida. O Criador, por Si próprio, não é sentido pela parte, que, na melhor das hipóteses, apenas pode imaginar como seria percebê-Lo.
O escuro vazio, sentido pela parte, manifesta-se no nosso mundo como o sofrimento habitual, causado por dificuldades materiais, doenças ou problemas familiares.
No entanto, tal como o Criador construiu o ambiente que rodeia esta parte, também tem o poder de o influenciar.
De que forma e com que propósito o faz? Para nos mostrar que, para nos libertarmos do sofrimento, devemos livrar-nos de todo o egoísmo. O Criador conduz-nos a um estado de tal miséria insuportável, através do nosso meio envolvente, dos filhos, do trabalho, das dívidas, das doenças ou dos problemas familiares, que a vida parece tornar-se um fardo impossível de suportar.
A certa altura, percebemos que esta condição miserável resulta das nossas ambições e das tentativas de alcançar coisas. Então, desperta em nós um único desejo – o desejo de não querer nada. Ou seja, deixamos de ter interesses pessoais, pois estes apenas nos trazem sofrimento.
Consequentemente, não nos resta outra alternativa senão suplicar ao Criador que nos salve do egoísmo. Isto força-nos a lutar para superar todos os nossos problemas, o que nos conduz a um sofrimento ainda maior.
Por esta razão, o Rabino Ashlag escreve na sua Introdução ao Talmud Eser Sefirot (Parágrafo 2):
"Mas se escutarem com o coração uma pergunta muito conhecida, estou certo de que todas as vossas dúvidas quanto a estudar a Cabala vão desaparecer sem deixar rasto."
Isto deve-se ao facto de esta pergunta, que surge diretamente do coração e não da inteligência ou do conhecimento, dizer respeito a muitas questões: o sentido da vida; o significado do nosso sofrimento (que ultrapassa em muito os nossos prazeres); as dificuldades da existência, que tantas vezes fazem a morte parecer um alívio fácil. E, por fim, o facto de não haver fim para este turbilhão de dor até partirmos desta vida, exaustos e arruinados.
Quem beneficia com isto ou, mais precisamente, a quem beneficiamos nós? O que mais deveríamos esperar desta vida? Ainda que cada um de nós seja, no seu íntimo, inquietado por esta pergunta sobre o sentido da vida, há momentos em que ela nos apanha de forma inesperada, levando-nos à loucura, incapacitando-nos de fazer seja o que for, despedaçando o nosso intelecto, mergulhando-nos num abismo de desespero e refletindo de volta a nossa própria insignificância.
Em resposta, escolhemos continuar a flutuar ao sabor do curso da vida, sem nos debruçarmos demasiado sobre a pergunta. Esta é uma pergunta sobre a qual ninguém quer sequer pensar. No entanto, ela permanece diante de nós com toda a sua força e amargura.
Por vezes, tropeçamos nela, e ela atravessa-nos a mente, derrubando-nos por completo. Continuamos a enganar-nos a nós próprios, deixando-nos arrastar irrefletidamente pelo curso da vida, como antes. Mas o Criador transmite-nos tais sensações para que, gradualmente, percebamos que todas as nossas desventuras e toda a nossa angústia resultam do facto de termos um interesse pessoal nos resultados das nossas ações.
É o nosso egoísmo, a nossa natureza e essência, que nos leva a agir “em nosso próprio benefício". E, como os nossos desejos nunca são plenamente satisfeitos, continuaremos a sofrer.
Contudo, se anulássemos todos os nossos interesses pessoais em tudo, romperíamos de imediato as correntes do nosso corpo e experienciaríamos o mundo livre de dor e aflição.
O método para nos libertarmos da escravidão do egoísmo encontra-se na Cabala.
O Criador colocou propositadamente o nosso mundo, com toda a sua miséria, entre Ele e nós. Fê-lo para nos ajudar a perceber que temos de nos libertar do egoísmo, pois este é a causa de todo o sofrimento. Eliminar o sofrimento e sentir o Criador, a origem de todo o prazer, só é possível se desejarmos sinceramente livrar-nos de todo o egoísmo.
Nos mundos espirituais, os desejos equivalem a ações, pois os desejos genuínos e sinceros conduzem de imediato à sua concretização. Em termos gerais, o Criador conduz-nos a uma decisão firme e definitiva de nos libertarmos de todos os interesses pessoais em qualquer situação da vida.
Ele fá-lo levando-nos a sofrer de tal forma que acabamos por ter um único desejo – o de pôr fim ao sofrimento. Isto só é possível se não tivermos absolutamente nenhum interesse pessoal ou egoísta no desfecho de qualquer situação do quotidiano.
Mas onde fica, então, o nosso livre-arbítrio? Onde está a liberdade de escolha para decidir que caminho seguir ou o que escolher na vida? O Criador empurra-nos para uma determinada solução ao colocar-nos numa tal miséria que a morte parece preferível à vida.
No entanto, Ele não nos dá a força necessária para pôr fim à nossa existência e escapar assim ao sofrimento. Pelo contrário, o Criador, de repente, dá-nos um vislumbre da única solução, que surge como um raio de sol por entre nuvens densas.
A solução não está na morte, nem na fuga à vida. Está na libertação do interesse pessoal no resultado das questões mundanas. Esta é a única solução que nos pode trazer paz e descanso do sofrimento insuportável.
Neste processo, não há liberdade de escolha; somos forçados a isto para escaparmos ao sofrimento. O livre-arbítrio manifesta-se quando tentamos avançar mais além, fortalecendo-nos e escolhendo concentrar todas as nossas ações apenas no Criador. Aprendemos que viver para nós próprios não nos traz senão sofrimento. O processo contínuo de correção e de controlo dos nossos pensamentos chama-se "processo de purificação".
O sofrimento causado pelos interesses egoístas deve ser tão intenso que estejamos dispostos a "viver com um pedaço de pão e um gole de água, e a dormir sobre o chão duro". Assim, devemos estar preparados para fazer tudo o que for necessário para nos libertarmos do egoísmo e dos interesses pessoais.
Quando alcançamos este estado e nos sentimos confortáveis nele, podemos entrar no domínio espiritual conhecido como "O Mundo Vindouro" (Olam HaBa). Assim, o sofrimento pode levar-nos a decidir que renunciar ao egoísmo nos será benéfico. Como resultado dos nossos esforços, ao recordarmos constantemente o sofrimento passado e ao mantermos e fortalecermos esta resolução nos nossos corações, podemos alcançar um estado em que o objetivo de todas as nossas ações seja beneficiar o Criador.
Quanto a nós próprios, para além do indispensável, vamos temer até, pensar em benefício ou prazer pessoal, por medo de voltar a experienciar o sofrimento insuportável causado pelo interesse próprio.
Se conseguirmos expulsar todos os pensamentos egoístas, até mesmo os mais básicos, então poderemos dizer que alcançamos a etapa final da renúncia às nossas próprias necessidades.
No nosso dia a dia, habituamo-nos a não pensar de todo em nós próprios, nas nossas relações interpessoais, na família, no trabalho, em todas as ações que realizamos neste mundo. Exteriormente, não pareceremos diferentes de ninguém à nossa volta. Mas, dentro de nós, porque o hábito se torna uma segunda natureza, nada vai restar dos nossos interesses pessoais.
A partir deste ponto, podemos passar à etapa seguinte da nossa vida espiritual e começar a sentir prazer em agradar ao Criador. No entanto, esse prazer já não será para nós, mas apenas para o Criador, pois teremos "aniquilado" toda a necessidade de prazer pessoal.
Por esta razão, este novo prazer é infinito no tempo e insondável na sua grandeza, pois não é limitado pelas nossas necessidades pessoais. Apenas neste momento vamo conseguir ver o quão bondoso e magnífico é o Criador, por nos ter dado a oportunidade de alcançar a felicidade extraordinária da união com Ele em amor eterno.
Deixa que a Cabala Seja o Seu Guia
Para que possamos alcançar este objetivo da criação, há duas etapas sucessivas no caminho da pessoa. A primeira envolve sofrimento e provações até que a pessoa se liberte do egoísmo. Mas, depois de ultrapassarmos essa primeira fase e nos livrarmos de todos os desejos pessoais, quando formos capazes de dirigir todo o pensamento ao Criador, então poderemos iniciar uma nova vida, plena de alegria espiritual e serenidade eterna, tal como concebido originalmente pelo Desejo do Criador no início da criação.
Não precisamos de seguir um caminho de total renúncia, ao ponto de nos contentarmos com um pedaço de pão, um gole de água e um descanso sobre a terra dura, como se isso nos habituasse a rejeitar o egoísmo. Em vez de reprimir forçosamente os desejos físicos, foi-nos dada a Cabala, a Luz da Cabala, que pode ajudar cada um de nós a libertar-se do egoísmo, a raiz de todas as aflições.
A Luz da Cabala possui uma força capaz de nos fazer transcender os desejos do corpo. No entanto, a força espiritual contida na Cabala só pode agir sobre nós se acreditarmos que ela nos vai ajudar e que é indispensável para a nossa sobrevivência, para não perecermos sob um sofrimento insuportável. Só nos vai ajudar se acreditarmos que o estudo da Cabala nos vai conduzir ao nosso objetivo e nos vai permitir alcançar a recompensa esperada: a libertação do desejo egoísta.
Aqueles que sentem este objetivo como algo vital procuram constantemente formas de se libertarem. Ao estudar a Cabala, procuram orientação para sair da prisão do interesse próprio. Podemos medir a profundidade da nossa fé na Cabala pelo ímpeto com que estudamos e procuramos respostas.
Se os nossos pensamentos estão constantemente ocupados com a busca da libertação do egoísmo, pode dizer-se que temos uma fé completa. Isto só é possível se sentirmos verdadeiramente que não encontrar uma saída para a nossa condição é pior do que morrer, pois o sofrimento causado pelo interesse pessoal é verdadeiramente incomensurável.
Apenas se procurarmos alívio com total determinação é que a Luz da Cabala nos vai ajudar. Só então nos será concedida a força espiritual necessária para nos libertarmos do nosso próprio ego. E só então seremos verdadeiramente livres.
Por outro lado, para aqueles que não sentem essa necessidade urgente, ou não sentem necessidade alguma, a Luz da Cabala transforma-se em escuridão. Como resultado, quanto mais estudam, mais profundamente se afundam no seu egoísmo, pois não utilizam a Cabala para o seu verdadeiro propósito.
Ao iniciarmos o estudo da Cabala e ao abrirmos um dos livros de Rashbi, Ari, Rav Yehuda Ashlag ou Rav Baruch Ashlag, o nosso objetivo deve ser receber do Criador uma recompensa – a força da fé – que nos permita encontrar o caminho para nos transformarmos. Devemos adquirir a confiança de que, mesmo na nossa condição egoísta, ainda podemos receber tal dádiva do Alto, pois ter fé é construir uma ponte para um estado oposto ao atual.
E mesmo que ainda não tenhamos passado por todo o sofrimento que nos levaria a abdicar de todos os interesses pessoais na vida, ainda assim a Cabala vai ajudar; em vez de sofrimento, receberemos outro caminho para seguir adiante.