<- Biblioteca de Cabala
Continuar a Ler ->

Capítulo 3. A Mesa de Jantar

Ato Um

Numa casa bem iluminada, com divisões espaçosas, um homem de aparência agradável está ocupado na cozinha. Está a preparar uma refeição para o seu tão aguardado convidado. Enquanto se debruça sobre as panelas e tachos, recorda-se das iguarias das quais o seu convidado tanto gosta.
A expectativa jubilosa do anfitrião é evidente. Com movimentos graciosos, quase como um bailarino, dispõe na mesa cinco pratos diferentes. Ao lado da mesa, encontram-se duas cadeiras almofadadas.
Ouve-se uma batida na porta e o convidado entra. O rosto do anfitrião ilumina-se ao vê-lo e convida-o a sentar-se à mesa de jantar. O convidado senta-se e o anfitrião olha para ele com carinho.
O convidado observa as iguarias diante de si e aproxima-se delas apenas o suficiente para sentir o aroma. É evidente que aprecia o que vê, mas expressa a sua admiração com uma contenção delicada, sem revelar que sabe que a comida lhe está destinada.
Anfitrião: Por favor, senta-te. Preparei tudo especialmente para ti, pois sei o quanto gostas destas coisas. Ambos sabemos o quão familiarizado estou com os teus gostos e hábitos à mesa. Sei que tens fome e sei quanto consegues comer, por isso preparei tudo exatamente como gostas, na quantidade exata que conseguirás terminar sem deixar uma migalha.
Narrador: Se sobrasse comida quando o convidado estivesse saciado, tanto o anfitrião como o convidado ficariam desapontados. O anfitrião ficaria insatisfeito, pois significaria que deseja oferecer mais do que o convidado quer receber.
O convidado, por sua vez, sentir-se-ia frustrado por não poder cumprir o desejo do anfitrião de que consumisse tudo. Também lamentaria estar saciado enquanto ainda houvesse iguarias por desfrutar, sem poder apreciá-las. Isso significaria que o seu desejo pelo prazer oferecido não era suficientemente grande.
Convidado (solenemente): De facto, preparaste exatamente o que eu gostaria de ver e saborear à minha mesa. Até a quantidade está perfeita. Isto é tudo o que poderia desejar na vida: desfrutar disto. Para mim, seria o prazer supremo.
Anfitrião: Por favor, saboreia tudo e desfruta. Isso será para mim uma grande alegria.
O convidado começa a comer.
Convidado (obviamente a apreciar a refeição e com a boca cheia, mas com um ar algo inquieto): Porque será que, quanto mais como, menos prazer sinto com a comida? O prazer que recebo extingue a fome, e passo a desfrutá-la cada vez menos. Quanto mais me aproximo da saciedade, menos aprecio a refeição.
E quando já recebi toda a comida, fico apenas com a memória do prazer, e não com o prazer em si. O prazer existia apenas enquanto tinha fome. Quando a fome desapareceu, também desapareceu a alegria. Recebi aquilo por que ansiava e, agora, aqui estou, sem prazer nem alegria. Já não desejo nada, e nada me traz felicidade.
Anfitrião (ligeiramente ressentido): Fiz tudo o que estava ao meu alcance para te agradar. Não é culpa minha que o próprio ato de receber prazer extinga a sensação de deleite, porque o desejo se esgota. De qualquer forma, agora estás cheio com aquilo que preparei para ti.
Convidado (defendendo-se): Ao receber tudo o que preparaste para mim, nem sequer consigo agradecer-te, porque deixei de desfrutar da abundância que me deste. O que sinto sobretudo é que tu me deste imenso, enquanto eu não te dei nada em troca. Como resultado, causaste-me vergonha ao me mostrares, sem intenção, que tu és o doador e eu sou o recetor.
Anfitrião: Eu não te mostrei que és o recetor e que eu sou o doador. Mas o simples facto de teres recebido algo de mim sem me retribuir fez-te sentir culpado, apesar de a generosidade fazer parte da minha natureza.
Não quero nada além de que aceites a minha comida. Não posso mudar isso. Por exemplo: crio peixes. Eles não se preocupam com quem os alimenta e sustenta. Também cuido do Bob, o meu gato. Ele, igualmente, não quer saber de quem vem a comida. Mas o Rex, o meu cão, preocupa-se. Ele não aceita comida de qualquer um.
Narrador: Os seres humanos são feitos de tal forma que há aqueles que recebem sem sequer se darem conta de que alguém lhes está a dar, e simplesmente tomam o que lhes é oferecido. Alguns chegam até a roubar sem qualquer remorso! Mas quando a pessoa desenvolve um sentido de identidade, passa a perceber quando lhe estão a dar algo, e isso desperta a consciência de que é o recetor. Isso traz consigo vergonha, autorreprovação e sofrimento.
Convidado (um pouco apaziguado): Mas que posso eu fazer para receber prazer sem me sentir apenas como o recetor? Como posso neutralizar dentro de mim a sensação de que tu és o doador e eu sou apenas aquele que recebe? Se há uma relação de dar e receber, e isso desperta esta vergonha em mim, o que posso fazer para evitá-la?
Talvez possas agir de forma a que eu não me sinta como o recetor! Mas isso só seria possível se eu não tivesse consciência da tua existência (como os teus peixes) ou se te percebesse, mas sem compreender que estás a dar-me algo (como um gato ou um ser humano pouco desenvolvido).
Anfitrião (estreitando os olhos em concentração e falando pensativamente): Acho que há uma solução, afinal. Talvez consigas encontrar uma forma de neutralizar dentro de ti essa sensação de apenas receber?
Convidado (com os olhos a brilhar): Ah, já sei! Sempre quiseste que eu fosse teu convidado. Então, amanhã virei cá e comportar-me-ei de tal maneira que te farei sentir como o recetor. Continuarei a ser eu a receber, claro, ao comer tudo o que preparaste, mas considerar-me-ei como o doador.

Ato Dois

No dia seguinte, na mesma sala, o anfitrião preparou uma refeição fresca, com exatamente as mesmas iguarias do dia anterior. Está sentado à mesa quando o convidado entra, com uma expressão desconhecida, algo reservada.
Anfitrião (sorrindo calorosamente, sem notar a mudança): Estava à tua espera. Fico tão feliz por te ver. Por favor, senta-te.
O convidado senta-se à mesa e cheira a comida com cortesia.
Convidado (observando a comida): Tudo isto é para mim?
Anfitrião: Mas claro! Apenas para ti! Ficaria encantado se aceitasses tudo isto de mim.
Convidado: Obrigado, mas na verdade não desejo assim tanto.
Anfitrião: Ora, isso não é verdade! Eu sei que queres! Porque não o aceitas?
Convidado: Não posso aceitar tudo isto de ti. Deixa-me desconfortável.
Anfitrião: Como assim, desconfortável? Desejo tanto que fiques com tudo isto! Para quem achas que o preparei? Seria uma grande alegria para mim se comesses tudo.
Convidado: Talvez tenhas razão, mas não quero comer toda esta comida.
Anfitrião: Mas não estás apenas a receber uma refeição; também me estás a fazer um favor ao sentares-te à minha mesa e desfrutares do que preparei.
Preparei tudo isto, não apenas para ti, mas porque me dá prazer ver-te aceitar o que te ofereço.
Por isso, ao aceitares comer, estarás a fazer-me um favor. Estarias a receber tudo isto por mim! Não estarias apenas a aceitar, mas sim a dar-me uma grande alegria. Na verdade, não és tu quem recebe a refeição, sou eu quem recebe alegria de ti. Serias tu a dar-me algo, e não o contrário.
O anfitrião desliza o prato perfumado para a frente do seu hesitante convidado. O convidado empurra-o para trás. O anfitrião volta a aproximá-lo, mas o convidado recusa novamente. O anfitrião suspira, e toda a sua expressão revela o quanto deseja que o convidado aceite a comida. O convidado adota então a atitude de quem está a conceder um favor ao anfitrião.
Anfitrião: Peço-te! Por favor, faz-me feliz.
O convidado começa a comer, mas pausa para refletir. Depois recomeça, mas volta a parar. Cada vez que o convidado hesita, o anfitrião encoraja-o a continuar. Só depois de alguma insistência o convidado prossegue. O anfitrião continua a colocar novas iguarias diante do convidado, implorando-lhe a cada vez que as aceite para lhe dar prazer.
Convidado: Se puder ter a certeza de que estou a comer apenas porque isso te dá prazer, e não porque eu o desejo, então serás tu o recetor e eu serei o doador de prazer. Mas para que isso aconteça, tenho de estar seguro de que como apenas por ti, e não por mim.
Anfitrião: Mas claro que estás a comer apenas por mim. Afinal, sentaste-te à mesa e não provaste nada até que te provei que não estavas simplesmente a comer, mas sim a dar-me uma enorme alegria. Vieste aqui para me proporcionar prazer.
Convidado: Mas se eu aceitasse algo que inicialmente não desejava, não sentiria prazer ao recebê-lo, e tu não desfrutarias ao ver-me aceitar de bom grado a tua oferta. Assim, conclui-se que só podes sentir prazer na medida em que eu desfruto daquilo que me ofereces.
Anfitrião: Eu sei exatamente o quanto gostas desta comida e a quantidade de cada prato que consegues comer. Por isso, preparei estes cinco pratos. Afinal, conheço o teu desejo por este e aquele prato, e não por qualquer outra coisa na tua vida. Saber o quanto os aprecias desperta em mim a sensação do teu prazer. Além disso, dá-me alegria saber que desfrutas dos meus pratos. Não tenho dúvidas de que o prazer que recebo de ti é genuíno.
Convidado: Como posso ter a certeza de que estou a desfrutar destes pratos apenas porque tu queres que eu os coma e porque os preparaste para mim? Como posso saber que não devo recusar, pois ao aceitar, estarei na verdade a dar-te alegria?
Anfitrião: É muito simples! Recusaste completamente a minha oferta até teres a certeza de que o fazias para me dar prazer. Só então aceitaste. A cada garfada que dás, sentes que estás a comer por mim e percebes a alegria que me proporcionas.
Convidado: Posso livrar-me da vergonha e sentir orgulho por te dar prazer, se pensar, a cada vez que recebo, que o faço por ti.
Anfitrião: Então come tudo! Queres tudo e, ao fazê-lo, estarás a dar-me todo o prazer possível!
Convidado (comendo com prazer e terminando todos os pratos, mas, depois, percebendo que ainda não está satisfeito): Agora comi tudo e desfrutei. Já não há mais comida para apreciar. O meu prazer desapareceu porque já não tenho fome. Neste momento, não posso trazer alegria a nenhum de nós. Então, o que faço agora?
Anfitrião: Não sei. Deste-me um enorme prazer ao receberes de mim. O que mais posso fazer para que desfrutes uma e outra vez? Como podes voltar a querer comer, se já comeste tudo? Onde vais encontrar um novo apetite?
Convidado: É verdade, o meu desejo de desfrutar transformou-se num desejo de te proporcionar alegria, e se agora não consigo desfrutar, como poderei dar-te prazer? Afinal, não posso criar dentro de mim um apetite por mais um banquete de cinco pratos!
Anfitrião: Não preparei mais do que aquilo que desejaste. Fiz tudo o que podia para te agradar. O teu problema é: “Como posso continuar a desejar mais, enquanto recebo mais e mais?”
Convidado: Mas se o prazer não sacia a fome, não posso senti-lo como prazer. A sensação de prazer surge quando satisfaço as minhas necessidades. Se não tivesse fome, não poderia desfrutar da comida e, consequentemente, não poderia proporcionar-te alegria. O que posso fazer para permanecer num estado de desejo constante e, assim, dar-te alegria continuamente ao demonstrar o meu prazer?
Anfitrião: Para isso, precisas de uma fonte diferente de desejo e um meio diferente de satisfação. Ao usares a tua fome para receber tanto a comida como o prazer de a comer, extingues ambos.
Convidado: Já percebi! O problema foi que me impedi de sentir prazer porque sabia que tu irias beneficiar disso. Recusei a tal ponto que, embora a refeição estivesse à minha frente, não a podia aceitar por vergonha de receber. Essa vergonha era tão intensa que estaria disposto a passar fome apenas para evitar sentir a humilhação de ser o recetor.
Anfitrião: Mas depois, quando te convenceste de que não estavas a receber para ti, começaste a receber por meu benefício. E, por isso, desfrutaste tanto da comida como do prazer que me proporcionavas. É por isso que comer deve estar em harmonia com a tua vontade. Afinal, sem prazer na comida, que prazer poderias dar-me?
Convidado: Mas não basta receber por ti, sabendo que desfrutas ao fazer isto por mim. Se o meu prazer vem da tua alegria, então a fonte do meu prazer não é a comida, mas sim tu! Preciso de sentir a tua alegria.
Anfitrião: Isso deveria ser fácil, pois sou totalmente transparente quanto a isso.
Convidado: Sim, mas de que depende o meu prazer? Depende de ti, da pessoa a quem estou a proporcionar alegria. Isso significa que o meu prazer depende da intensidade do meu desejo de te dar alegria, ou seja, da medida em que percebo a tua grandeza.
Anfitrião: Então, o que posso fazer?
Convidado: Se te conhecesse melhor, se tivesse um conhecimento mais profundo de ti, se realmente fosses grandioso, então a tua grandeza e poder absoluto seriam revelados a mim. Dessa forma, desfrutaria tanto de te proporcionar prazer como da consciência de quem o está a receber. O meu prazer seria proporcional à revelação da tua grandeza.
Anfitrião: Isso depende de mim?
Convidado: Vê bem, se eu dou algo, é importante saber quanto estou a dar e a quem. Se for a alguém que amo, como os meus filhos, estou disposto a dar na medida do amor que sinto por eles. Isso dá-me alegria. Mas se alguém desconhecido bater à minha porta, darei alguma coisa porque consigo empatizar com a necessidade e espero que, se algum dia me encontrar em grande dificuldade, alguém também me ajude.
Anfitrião: Esse é o princípio que está na base de todo o conceito de apoio social. As pessoas perceberam que, sem ajuda mútua, todos sofreriam. Ou seja, sofreriam quando fossem elas as necessitadas. O egoísmo força as pessoas a dar, mas isso não é uma dádiva genuína. É apenas uma forma de garantir a própria sobrevivência.
Convidado: Acredito que este tipo de doação não é genuíno. Toda a nossa “generosidade” não passa de uma maneira de recebermos prazer, satisfazendo-nos a nós próprios e àqueles que amamos.
Anfitrião: Então, como posso dar-te um prazer que vá além do simples prazer da comida?
Convidado: Isso não depende de ti, mas de mim. Se a pessoa que viesse à minha casa não fosse alguém comum, mas sim uma personalidade importante, eu sentiria um prazer muito maior em dar-lhe algo do que a uma pessoa qualquer. Isso significa que o meu prazer não depende da comida, mas sim de quem a preparou!
Anfitrião: Então, o que posso fazer para que me respeites mais?
Convidado: Como estou a receber em teu benefício e não no meu, quanto maior for o respeito que tiver por ti, maior será o prazer que sentirei ao saber a quem estou a proporcionar alegria.
Anfitrião: E como posso aprofundar a tua estima por mim?
Convidado: Fala-me de ti, mostra-me quem és! Assim, poderia obter prazer não apenas por receber a comida, mas também por saber quem ma está a oferecer, por conhecer melhor a pessoa com quem tenho esta relação. A menor porção de comida recebida de uma figura grandiosa dar-me-á um prazer muito maior. Vês? O prazer aumentará na proporção da grandeza que eu te atribuir.
Anfitrião: Isso significa que, para o prazer se tornar maior, devo abrir-me contigo, e tu deves desenvolver em ti uma imagem minha.
Convidado: Exactamente! É isso que cria em mim uma nova fome – o desejo de te dar cresce na mesma medida da tua grandeza. Não é porque quero escapar à sensação de vergonha, pois a vergonha não me permite satisfazer a minha fome.
Anfitrião: Dessa forma, deixas de sentir apenas a fome e começas a perceber a minha grandeza e o teu desejo de me proporcionar prazer. Estás a dizer que já não desejas apenas saciar o meu apetite, mas sim desfrutar da minha grandeza e do teu próprio desejo de me agradar?
Convidado: E o que há de errado nisso? Posso obter prazer da comida muitas vezes mais do que ela própria poderia proporcionar, porque acrescento à fome um segundo desejo: a vontade de te dar algo.
Anfitrião: Isso também devo satisfazer.
Convidado: Não. Essa vontade – e a sua realização – eu próprio vou criar em mim. Para isso, basta-me conhecer-te melhor. Revela-te a mim, e eu vou criar dentro de mim o desejo de te proporcionar alegria. Assim, também receberei prazer ao dar, e não apenas ao eliminar a vergonha.
Anfitrião: O que ganhas ao conhecer-me, para além do aumento do teu prazer?
Convidado (claramente insinuando que esse é o verdadeiro objectivo de tudo): Há outro grande benefício. Se eu criar em mim uma nova vontade, distinta da fome natural, poderei tornar-me mestre dessa vontade. Poderei sempre aumentá-la, preenchê-la de prazer e continuar a transmiti-lo a ti através da recepção.
Anfitrião: Não perderás essa vontade quando estiver satisfeita, tal como perdeste a fome?
Convidado: Não, porque posso sempre criar dentro de mim uma impressão ainda maior de ti. Posso sempre gerar novos desejos de te proporcionar alegria e, ao receber de ti, concretizarei esses desejos. Esse processo pode continuar indefinidamente.
Anfitrião: E de que depende isso?
Convidado: Depende de descobrir constantemente novas qualidades em ti e de perceber a tua grandeza.
Anfitrião: Então, para que o prazer seja contínuo – e para que, mesmo ao receber um prazer egoísta, a fome não cesse mas antes aumente com essa recepção – é necessário criar um novo tipo de fome: o desejo de sentir o doador.
Convidado: Sim, além de receber prazer (os manjares), o receptor vai desenvolver uma percepção da grandeza do doador. A descoberta do anfitrião e a experiência dos manjares tornam-se, assim, uma só coisa. Ou seja, o próprio prazer cria uma consciência do doador. O doador, a comida e as qualidades do doador tornam-se uma unidade.
Anfitrião: Então, conclui-se que aquilo que desejaste desde o início, de forma inconsciente, era que o doador se revelasse. Para ti, essa revelação é, na verdade, a verdadeira satisfação.
Convidado: No início, nem sequer percebia que era isso que queria. Apenas via a comida e pensava que era isso que desejava.
Anfitrião: Fi-lo de propósito, para que, gradualmente, desenvolvesses a tua própria vontade independente, que supostamente criarias por ti próprio, para que a preenchesses por tua conta. Assim, assumiras simultaneamente o papel de convidado e de anfitrião.
Convidado: Porque é que tudo foi construído dessa forma?
Anfitrião: Para te levar à plenitude. Para que desejes cada coisa em plenitude e alcances a máxima realização. Para que possas desfrutar plenamente de cada desejo e para que o prazer seja ilimitado.
Convidado: Então porque não soube disso desde o início? Tudo o que vi à minha volta foram objetos que desejava, sem nunca suspeitar que, na verdade, aquilo que sempre quis foste tu.
Anfitrião: Foi feito precisamente assim para que, mesmo estando numa situação em que não me sentias, pudesses chegar a mim por ti próprio e criar essa vontade interior por tua própria iniciativa.
Convidado (perplexo): Mas se sou eu quem cria essa vontade dentro de mim, onde estás tu nesta equação?
Anfitrião: Fui eu quem criou, desde o início, a tua vontade egoísta mais simples e sou eu quem continua a desenvolvê-la, cercando-te constantemente de novos objectos de prazer.
Convidado: Mas qual é o propósito de tudo isto?
Anfitrião: Para te convencer de que perseguir o prazer nunca te vai satisfazer por completo.
Convidado: Vejo isso claramente: assim que obtenho o que desejo, o prazer desaparece instantaneamente e volto a ansiar por algo, seja maior ou completamente diferente. Estou numa busca constante de prazer, mas nunca o alcanço verdadeiramente; no momento em que o alcanço, ele escapa-me.
Anfitrião: E é precisamente por isso que deves desenvolver a tua consciência e tornar-te ciente da futilidade desse tipo de existência.
Convidado: Mas se tu desenvolvesses em mim a visão de como as coisas realmente são, eu compreenderia o significado e o propósito de tudo o que está a acontecer!
Anfitrião: Essa visão só te será revelada quando estiveres totalmente convencido da falta de sentido da tua existência egoísta e perceberes que é necessário um novo modo de agir. Vais precisar de conhecer as tuas raízes e o significado da tua vida.
Convidado: Mas esse processo dura milhares de anos. Quando termina?
Anfitrião: Nada é criado em vão. Tudo o que existe serve apenas para revelar às criaturas uma forma diferente de existência. O processo é lento porque cada pequeno desejo precisa de surgir e ser reconhecido como indigno de ser usado na sua forma inicial.
Convidado: E há muitos desses desejos?
Anfitrião: Uma infinidade, e na exacta proporção do prazer que receberás no futuro. Mas o prazer de receber a comida não muda. Não podes comer mais do que um almoço por dia. A capacidade do teu estômago não se altera. Portanto, a quantidade que vem de mim e que recebes não se modifica.
Mas quando jantas à minha mesa para me agradar, esse simples pensamento cria em ti uma nova vontade de comer e um novo prazer, além do prazer da comida. Esse prazer mede-se em tamanho e intensidade, ou em quantidade e qualidade, de acordo com o prazer que obténs ao jantar à minha mesa com o propósito de me agradar.
Convidado: Então como posso aumentar o meu desejo de receber prazer pelo Teu benefício?
Anfitrião: Isso depende da tua apreciação e respeito por mim. Depende da grandeza que me atribuis.
Convidado: Então como posso aumentar a minha admiração por ti?
Anfitrião: Para isso, basta que me conheças melhor – que me vejas em cada ação que realizo, que observes e te convenças de quão grandioso sou realmente, e que compreendas que sou omnipotente, misericordioso e benevolente.
Convidado: Então mostra-te!
Anfitrião: Se o teu pedido surge de um desejo de me dar algo, eu revelar-me-ei. Mas se nasce de um desejo de te satisfazeres ao ver-me, não só me recusarei a revelar-me, como me ocultarei ainda mais.
Convidado: Porquê? Não é o mesmo para ti, independentemente da forma como eu recebo de ti? Afinal, queres que eu desfrute. Porque te escondes de mim?
Anfitrião: Se me revelasse por completo, receberias tanto prazer da minha eternidade, omnipotência e plenitude que não serias capaz de aceitar esse prazer pelo Meu Benefício. Esse pensamento nem sequer te passaria pela cabeça, e mais tarde sentirias vergonha novamente. Além disso, como o prazer seria perpétuo, eliminaria o teu desejo e, mais uma vez, ficarias vazio de desejo.
Convidado (finalmente compreendendo): Então é por isso que te escondes de mim, para me ajudar! E eu pensava que era porque não querias que te conhecesse.
Anfitrião: O meu maior desejo é que me vejas e estejas próximo de mim. Mas que posso fazer se, ao fazê-lo, deixarias de sentir prazer? Não seria isso o mesmo que morrer?
Convidado: Mas se não tiver consciência de ti, como poderei progredir? Tudo depende do quanto te revelas a mim.
Anfitrião: De facto, apenas a sensação da minha presença te dá a capacidade de crescer e receber. Sem essa percepção, apenas absorverias tudo e, de imediato, deixarias de sentir qualquer prazer. É por isso que, quando me manifesto perante ti, sentes vergonha, a sensação de quem dá e um desejo de receber as mesmas qualidades daquele que dá.
Convidado: Então revela-te a mim o mais depressa possível.
Anfitrião: Revelar-me-ei, mas apenas na medida em que isso te seja benéfico, ainda que deseje sempre mostrar-me a ti. Afinal, escondi-me de propósito para criar as condições do livre-arbítrio. Desta forma, és livre para agir e escolher como pensar, independentemente da minha presença. Não haverá qualquer imposição da parte do anfitrião.
Convidado: Então como te revelas a mim?
Anfitrião: Faço-o lenta e gradualmente. Cada grau de revelação chama-se um “Mundo”, desde o mais oculto até ao mais exposto.
Fim.

Conclusão

A partir daqui, conclui-se que o nosso principal objetivo é elevar a importância do Criador aos nossos próprios olhos, ou seja, alcançar fé na Sua grandeza e poder. Devemos fazê-lo porque esta é a única forma possível de escapar à prisão do egoísmo pessoal e de aceder aos mundos superiores.
Como mencionado anteriormente, podemos enfrentar dificuldades extremas ao decidir seguir o caminho da fé e abandonar todas as preocupações com o eu. Sentimo-nos então isolados do mundo, suspensos no vazio, sem o apoio do senso comum, da razão ou da experiência prévia que nos sustente.
É como se tivéssemos abandonado o nosso próprio ambiente, a família e os amigos em prol da união com o Criador. Estas sensações surgem quando nos falta fé no Criador, quando não conseguimos senti-Lo, nem à Sua presença, nem ao Seu domínio sobre toda a criação. Nesses momentos, podemos sentir a ausência do objeto da fé.
No entanto, assim que começamos a sentir a presença do Criador, estamos prontos para nos submeter totalmente ao Seu poder e para seguir o Criador cegamente, sempre dispostos a anular-nos completamente perante Ele, menosprezando quase instintivamente o nosso próprio intelecto. Por esta razão, o problema mais importante que enfrentamos é como perceber a presença do Criador.
Assim, sempre que surgirem dúvidas, vale a pena dedicar toda a nossa energia e pensamento em prol do Criador. Devemos imediatamente aspirar a apegar-nos ao Criador com todas as fibras do nosso ser. Este sentimento em relação ao Criador é denominado "fé".
O processo pode ser acelerado se fizermos deste objetivo uma prioridade. Quanto mais importante for para nós, mais rapidamente alcançaremos a fé, ou seja, a nossa consciência do Criador.
Além disso, quanto maior for a importância que atribuirmos à perceção do Criador, mais forte será essa perceção, até que se torne parte do nosso próprio ser. A sorte (mazal, em hebraico) é uma forma especial de Providência que não podemos influenciar de forma alguma. Mas está determinado do Alto que nós, enquanto indivíduos, temos a responsabilidade de tentar mudar a nossa própria natureza. Depois, o Criador vai avaliar os nossos esforços nesta direção e, eventualmente, alterar a nossa natureza, elevando-nos acima deste mundo.
Por conseguinte, antes de empregar qualquer esforço, devemos compreender que não podemos esperar que as Forças Superiores, a sorte ou qualquer outro tratamento especial do Alto intervenham a nosso favor. Pelo contrário, devemos começar por reconhecer plenamente que, se não tomarmos a iniciativa, não alcançaremos aquilo que desejamos.
No entanto, assim que completamos uma tarefa, que nos dedicamos ao estudo ou que fazemos qualquer outro esforço, devemos chegar à seguinte conclusão:
Tudo o que alcançamos como resultado dos nossos esforços teria acontecido de qualquer forma, mesmo sem qualquer empenho da nossa parte, uma vez que o resultado foi previamente determinado pelo Criador.
Assim, se aspiramos a compreender a verdadeira Providência, devemos, desde cedo, tentar assimilar estas contradições dentro de nós em todas as nossas ações.
Por exemplo, de manhã, devemos iniciar a nossa rotina diária de estudo e trabalho, deixando de lado todos os pensamentos sobre o domínio divino do Criador sobre o mundo e os seus habitantes. Cada um de nós deve trabalhar como se o resultado final dependesse apenas de si.
Mas, ao fim do dia, em circunstância alguma devemos permitir-nos pensar que aquilo que alcançamos foi fruto exclusivo do nosso esforço. Devemos compreender que, mesmo que tivéssemos permanecido deitados o dia inteiro, chegaríamos ao mesmo resultado, porque esse desfecho já tinha sido determinado pelo Criador.
Assim, quem deseja viver uma vida de verdade deve, por um lado, obedecer às leis da sociedade e da natureza como qualquer outra pessoa, mas, por outro, deve também acreditar no domínio absoluto do Criador sobre o mundo.
Todos os nossos atos podem ser classificados como bons, neutros ou maus. A nossa tarefa consiste em elevar os atos neutros ao nível dos bons.
Podemos alcançar isto tomando consciência de que, embora sejamos nós a realizar os atos, no final, é sempre a vontade do Criador que prevalece. Por exemplo, quando estamos doentes, devemos reconhecer que a cura está inteiramente nas mãos do Criador, mas, ao mesmo tempo, devemos tomar os medicamentos prescritos por um médico qualificado e acreditar que a sua competência nos ajudará a recuperar. No entanto, quando, após seguir rigorosamente as instruções do médico, melhoramos, devemos acreditar que teríamos recuperado de qualquer forma, pois assim estava previsto no plano do Criador.
Portanto, em vez de agradecer ao médico, devemos agradecer ao Criador. Desta forma, transformamos um ato neutro num ato espiritual e, ao repetir este processo em relação a todos os nossos atos neutros, podemos, gradualmente, "espiritualizar" todos os nossos pensamentos.
Os exemplos e explicações acima são importantes, pois podem, na verdade, tornar-se sérios obstáculos que impedem a nossa elevação espiritual. O problema agrava-se quando pensamos que compreendemos os princípios do domínio divino e, artificialmente, concentramos as nossas energias no fortalecimento da crença na omnipresença do Criador, em vez de trabalharmos verdadeiramente sobre nós próprios.
Muitas vezes, para demonstrar a nossa fé no Criador, ou simplesmente por preguiça, assumimos que não precisamos de trabalhar sobre nós próprios, pois tudo está nas mãos do Criador. Ou então, fechamos os olhos e confiamos apenas numa fé cega, evitando questões essenciais sobre a verdadeira fé.
No entanto, ao evitar responder a essas questões, estamos a privar-nos da possibilidade de progresso espiritual. Diz-se sobre este mundo: "Com o suor do teu rosto comerás o pão." No entanto, quando conquistamos algo, torna-se difícil admitir que o resultado não se deveu apenas ao nosso esforço ou às nossas capacidades, mas sim à obra do Criador.
Devemos esforçar-nos, com o suor do nosso rosto, para fortalecer a nossa fé no domínio absoluto do Criador. Mas, para crescermos e experienciarmos novas sensações espirituais, temos de nos empenhar em compreender e aceitar a natureza contraditória do domínio divino (que apenas parece contraditória devido à nossa cegueira).
Só assim saberemos exatamente o que é exigido de nós e poderemos crescer para experienciar novas sensações espirituais.