<- Biblioteca de Cabala
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Comecemos onde terminámos o primeiro capítulo. Dissemos que as coisas poderiam ser grandiosas se aprendêssemos a usar o nosso egoísmo de forma diferente — para nos unirmos aos outros de modo a formar um único ser espiritual. Aprendemos até que existe um meio para isso — o método da Cabala, concebido exatamente para esse propósito.

Mas, se olharmos à nossa volta, podemos ver claramente que não estamos a caminhar para um futuro positivo. Estamos numa crise — uma grande crise. Mesmo que ainda não tenhamos sido afetados por ela, não temos garantia de que permaneceremos incólumes. Parece que não há área onde a crise não tenha deixado a sua marca, seja nas nossas vidas pessoais, nas sociedades em que vivemos, ou na Natureza.

As crises, por si só, não são necessariamente negativas; elas indicam simplesmente que o estado atual das coisas se esgotou e que é tempo de passar à fase seguinte. A democracia, a revolução industrial, a libertação das mulheres, a física quântica, tudo isso surgiu como resultado de crises nos seus respetivos campos. De facto, tudo o que existe hoje é o resultado de uma crise passada.

A crise atual não é essencialmente diferente das anteriores; no entanto, é muito mais intensa, afetando o mundo inteiro. Mas, como qualquer crise, é uma oportunidade para a mudança, um trampolim para o crescimento. Se escolhermos corretamente, todas as dificuldades poderiam simplesmente desaparecer. Poderíamos facilmente providenciar comida, água e abrigo para o mundo inteiro. Poderíamos estabelecer a paz mundial e tornar este planeta um lugar próspero e dinâmico. Mas, para que isso aconteça, temos de querer que aconteça e escolher o que a Natureza deseja que escolhamos — a unidade, em vez da nossa atual escolha de separação.

Por que, então, não queremos unir-nos? Por que nos estamos a afastar uns dos outros? Quanto mais progredimos e mais conhecimento adquirimos, mais insatisfeitos nos tornamos. Aprendemos a construir naves espaciais, a criar robôs do tamanho de moléculas; deciframos o genoma humano inteiro. Por que, então, não aprendemos a ser felizes?

Quanto mais aprendermos sobre a Cabala, mais descobriremos que ela sempre nos conduz à raiz das coisas. Antes de nos dar respostas, ela explica por que estamos no nosso estado atual. E, uma vez que conhecemos a raiz da nossa situação, raramente precisaremos de mais orientação. Nesse espírito, vejamos o que temos aprendido até hoje e, talvez, descubramos por que ainda não encontramos a chave para a felicidade.


POR TRÁS DE PORTAS FECHADAS

O homem... se for insuficientemente ou mal educado, é a mais selvagem das criaturas terrenas.

- Plato, As Leis


O conhecimento sempre foi considerado um bem valioso. A espionagem não é uma invenção dos tempos modernos; ela existe desde o início da história. Mas existiu porque o conhecimento sempre foi partilhado com base na necessidade de saber, e a única disputa era sobre quem precisava de saber.

No passado, os detentores do conhecimento eram chamados “sábios”, e o conhecimento que possuíam era sobre os segredos da Natureza. Os sábios escondiam o seu conhecimento, temendo que caísse nas mãos daqueles que consideravam indignos.

Mas como determinamos quem tem direito a saber? O facto de eu possuir uma informação exclusiva dá-me o direito de a esconder? Naturalmente, nenhuma pessoa concordaria que é indigna de saber; por isso, tentamos “roubar” qualquer informação que desejamos e que não está abertamente acessível.

Mas nem sempre foi assim. Há muitos anos, antes de o egoísmo atingir o seu nível mais elevado, as pessoas consideravam o benefício do coletivo antes do seu próprio. Sentiam-se ligadas ao todo da Natureza e ao todo da humanidade, não a si próprias. Para elas, esta era a forma natural de ser.

Mas hoje, as nossas considerações mudaram drasticamente, e acreditamos que temos o direito de saber tudo e de fazer tudo. É isso que o nosso nível de egoísmo determina automaticamente.

De facto, mesmo antes de a humanidade alcançar o quarto nível de desejo, os estudiosos começaram a vender a sua sabedoria por lucros materiais, como dinheiro, honra e poder. À medida que as tentações materiais cresciam, as pessoas já não conseguiam manter um modo de vida modesto e dedicar-se inteiramente à investigação da Natureza. Em vez disso, esses sábios começaram a usar o seu conhecimento para obter prazeres materiais.

Hoje, com o progresso da tecnologia e o aumento do impulso dos nossos egos, o uso indevido do conhecimento tornou-se a norma. No entanto, quanto mais a tecnologia avança, mais perigosos nos tornamos para nós próprios e para o meio que nos rodeia. À medida que nos tornamos mais poderosos, somos mais tentados a usar o nosso poder para obter o que queremos.

Como dissemos antes, o desejo de receber consiste em quatro níveis de intensidade. Quanto mais poderoso se torna, maior é o nosso declínio social e moral. Portanto, não é de admirar que estejamos numa crise. Também é muito claro por que os sábios escondiam o seu conhecimento, e por que o seu próprio egoísmo crescente agora os obriga a revelá-lo.

Sem nós mudarmos a nós próprios, o conhecimento e o progresso não nos ajudarão. Pelo contrário, apenas causarão mais danos do que já causaram. Portanto, seria extremamente ingénuo esperar que o avanço científico cumpra a sua promessa de uma vida boa. Se quisermos um futuro mais brilhante, precisamos apenas de nos mudar a nós próprios.


A eVOLUÇÃO DOS DESEJOS

A afirmação de que a natureza humana é egoísta não é propriamente uma novidade. Mas, porque somos naturalmente egoístas, todos nós, sem exceção, estamos propensos a usar indevidamente o que sabemos. Isso não significa necessariamente que usaremos o conhecimento para cometer um crime. Pode manifestar-se em coisas pequenas, aparentemente triviais, como obter uma promoção no trabalho sem a merecer ou afastar a amada do nosso melhor amigo.

A verdadeira novidade sobre o egoísmo não é que a natureza humana seja egoísta; é que eu sou egoísta. A primeira vez que confrontamos o nosso próprio egoísmo é uma experiência bastante reveladora. E, como qualquer revelação, é uma grande dor de cabeça.

Há uma boa razão para o nosso desejo de receber estar em constante evolução, e abordaremos isso em breve. Mas, por agora, foquemo-nos no papel dessa evolução na forma como adquirimos conhecimento.

Quando surge um novo desejo, ele cria novas necessidades. E, quando procuramos formas de satisfazer essas necessidades, desenvolvemos e aprimoramos os nossos intelectos. Ou seja, é a evolução do desejo de receber prazer que gera a evolução.


O primeiro nível de desejo está relacionado com desejos físicos, como comida, sexo, família e lar. Estes são os desejos mais elementares, partilhados igualmente por todas as criaturas vivas. Ao contrário do primeiro nível de desejos, todos os outros níveis são exclusivamente humanos e derivam de estarmos numa sociedade humana. O segundo nível é o desejo de riqueza; o terceiro é o desejo de honra, fama e domínio; e o quarto nível é o desejo de conhecimento.


Um olhar sobre a história humana, sob a perspetiva da evolução dos desejos, mostra como esses desejos crescentes geraram cada conceito, descoberta e invenção. Na verdade, cada inovação foi uma ferramenta que nos ajuda a satisfazer as crescentes necessidades e exigências que os nossos desejos criam.

A felicidade ou infelicidade, o prazer ou o sofrimento dependem de quão bem satisfazemos as nossas necessidades. Mas a satisfação requer esforço. De facto, somos tão movidos pelo prazer que, segundo o cabalista Yehuda Ashlag, “Não se pode realizar o menor movimento sem motivação… sem de alguma forma beneficiar a si próprio.” Para além disso, “Quando, por exemplo, alguém move a mão da cadeira para a mesa, é porque pensa que, ao colocar a mão na mesa, receberá maior prazer. Se não pensasse assim, deixaria a mão na cadeira pelo resto da sua vida.”

No capítulo anterior, dissemos que o egoísmo é um paradoxo. Ou seja, a intensidade do prazer depende da intensidade do desejo. À medida que a saciação aumenta, o desejo diminui proporcionalmente. Portanto, quando o desejo desaparece, o prazer também desaparece. Conclui-se que, para desfrutar de algo, não basta querê-lo, mas é preciso continuar a querê-lo, ou o prazer desvanecer-se-á.

Para além disso, o prazer não está no objeto desejado; está em quem deseja o prazer. Por exemplo: se eu sou louco por atum, isso não significa que o atum tenha algum prazer em si, mas que um prazer na “forma” de atum existe em mim.

Pergunte a qualquer atum se ele desfruta da sua própria carne. Duvido que respondesse positivamente. Eu poderia, de forma indelicada, perguntar ao atum: “Mas por que não estás a desfrutar? Quando dou uma dentada em ti, sabe tão bem… E tu tens toneladas de atum! Se fosse tu, estaria no paraíso.”

Claro, todos sabemos que este não é um diálogo realista, e não apenas porque os atuns não falam português. Sentimos instintivamente que os atuns não podem desfrutar da sua própria carne, enquanto os humanos podem, e muito, desfrutar do sabor do atum.

Por que este prazer humano pelo sabor do atum? Porque temos um desejo por ele. A razão pela qual os atuns não desfrutam da sua própria carne é que não têm desejo por ela. Um desejo específico de receber prazer de um objeto específico é chamado de Kli (vaso/ferramenta), e a receção do prazer dentro do Kli é chamada de Ohr (Luz). O conceito de Kli e Ohr é, sem dúvida, o conceito mais importante na sabedoria da Cabala. Quando puderes construir um Kli, um vaso para o Criador, receberás a Sua Luz.