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Biblioteca de Cabala

Michael Laitman

Recordar


Recordar e Esquecer, Manter e Perder
Durante o exílio, considerado como “o mundo feminino”, o trabalho consiste em manter. Aquele que falha no seu trabalho pode perder aquilo que lhe foi concedido. E a Dvekut [adesão] neste mundo acontece pela força em manter, e a decoração desta força que mantêm manifesta-se na elevação da emoção, assim como na elevação da própria plenitude e no fortalecimento da sua Dvekut [adesão].
No entanto, no futuro, não haverá medo de perda ou roubo, pois “a morte será eliminada para sempre”, e aqui o trabalho limitar-se-á à recordação. Embora, a partir dessa perspectiva, uma forma deveria ser suficiente, a natureza do corpo é cansar-se da mesma forma. Por isso, as formas devem ser vestidas e despojadas sucessivamente, para que o corpo experiencie uma forma diferente a cada momento, aumentando assim o desejo. Isto é semelhante ao ato de vendar os olhos do cavalo enquanto caminha à volta da mó, para que não se fatigue.
Isto é um conceito profundo e de grande importância precisamente por ser tão simples: a vontade do Criador em relação ao servo é a mais louvável. Além disso, é sabido que quanto mais próximo o trabalho estiver da natureza, melhor será. A regra é que, se o amor de um dos dois amantes aumentar até alcançar uma medida completa e absoluta, ou seja, “natural e completa”, toda a força do amor vai extinguir-se no outro.
Ainda que a razão lhe demonstre de forma evidente a plenitude do amor do seu amado, a capacidade de retribuir esse amor não vai crescer de forma alguma. Pelo contrário, na medida em que sente a totalidade do amor, o sentimento de amor dentro de si vai extinguir-se gradualmente, pois deixará de haver qualquer temor, já que esse amor se revela como absoluto. Por essa razão, a medida da espiritualidade, o amor na natureza do sujeito amado vai anular-se e corromper-se.
De facto, a vontade do Criador é proclamar o Seu amor, mas ao mesmo tempo deixar um espaço para a “expansão das fronteiras do amor”.
Estes dois princípios são opostos, pois, quando o amor é revelado, adquire uma forma obrigatória, como um amor perfeito e natural. Assim, não resta um lugar para trabalhar, para expandir esse amor, uma vez que o amante completo e fiel não se satisfaz com a simples retribuição do amado pelo seu amor, tal como está escrito: “Se fores justo, o que Lhe darás?”
Pelo contrário, quando o amado sente que aquele que o ama deseja amá-lo em troca de alguma recompensa, esse lugar torna-se carente, pois, onde existe o desejo de recompensa, o amor altera-se caso a recompensa esteja ausente. Assim, esse amor não é absoluto. Por esta razão, quando a condição é cancelada, o amor é cancelado como em: “Uma visão de paz, mas não há paz.”
É bem sabido que o amaldiçoado não adere ao abençoado, tal como está escrito: “Dará sabedoria aos sábios.” E a servidão de acrescentar e expandir a plenitude não se aplica de forma alguma aquele que está carente, mas sim ao verdadeiro trabalhador completo. E, para este trabalhador completo, parece não haver lugar algum para o trabalho.
Isto é o significado de “recordar”, semelhante a alguém que diz ao seu amado: “Aqui tens um saco cheio de pedras preciosas, como prova do meu amor.” Dessa forma, o amado esforça-se por contar com precisão cada pedra, para assim revelar também o amor no seu próprio coração. Dessa forma, o amor em si próprio não muda quando o trabalho não é contado, pois já se encontra na sua posse.
No entanto, para retribuir de algum modo ao amado, toca frequentemente nas pedras preciosas, de modo a ser digno de revelar continuamente a grandeza do amor. Deste modo, os sentimentos de amor fluem constantemente entre ambos e multiplicam-se, sem que a essência se altere.
Isto explica a adoção de diferentes combinações. Embora a essência permaneça inalterada, nada deve ser perdido ou corrompido, nem mesmo uma centelha da potencial revelação das forças ocultas que existem sempre na substância e aparece em novas combinações, nunca antes vistas pelo olho corpóreo. Dessa forma, a matéria tem um novo sabor, e motiva-se a suportar e a regressar sempre e para sempre. Isto é semelhante aos múltiplos banquetes, dos quais a substância se sacia e deseja replicar essa forma repetidamente, ou aos acoplamentos, pois nelas se encontram sempre novos sabores.
Agora podemos compreender a associação da substância a um corpo e a uma alma. Devido à substância estar enraizada no “esquecimento” e, pior ainda, por extinguir qualquer forma de amor absoluto, isso proporciona à alma um lugar para um trabalho obrigatório, ou seja, para regressar em diferentes combinações a cada instante. Caso contrário, a imperfeição alcançaria a alma também, por causa da máscara existente nas raízes da matéria acima mencionada. Embora o amor em si próprio seja perfeito e completo, parece estar coberto devido à substância. No entanto, ao ser compelido a regressar e repetir, os acréscimos aumentam para além da essência, e os limites do amor expandem-se maravilhosamente.
Agora pode compreender o significado de “a terceira geração poderá entrar na assembleia do Senhor”. Na primeira geração, existia a Klipa [Casca/pele] do egípcio, como se o espaço fosse demasiado estreito. Isto acontece porque, apesar de o amante e o amado estarem na plenitude desejável, faltava-lhes um lugar onde pudessem expandir-se e multiplicar-se. Devido à sucção da substância, a alma deve revelar o amor na substância também.
Não há outra solução senão evidenciar esse amor através de um grande esforço e uma grande força, pois a substância não conhece outra linguagem além das emoções. Assim, na medida em que sente o amor, encontra-se forçada a retribuir com um trabalho sublime e uma força vigorosa. Portanto, quando a alma sente o Seu amor absoluto e incondicional, o trabalho da substância assenta totalmente em “pois ninguém dá dinheiro por nada”. Esta é uma lei na natureza corpórea (para criar espaço). Nesse momento, a substância esforça-se em gratidão e submissão, de acordo com os seus sentimentos, louvando e agradecendo incessantemente.
Contudo, como referido anteriormente, a substância cansa-se da primeira combinação e do primeiro sabor, o que leva à diminuição da sensação e, por conseguinte, da gratidão, até que mesmo esse pequeno trabalho cessa. E, ao permanecer sem trabalho, ao ver o amor absoluto, impõe-se a Klipa do egípcio, o estreito superior [apertado].
Posteriormente, na segunda geração, havia exatamente a mesma Klipa como na primeira geração, com o acréscimo da Klipa do edomita, que representa a ausência total de regresso ou repetição, ao contrário da primeira geração, que, apesar de tudo, ainda tinha um motivo para manifestar o sentimento através da gratidão.
Mas “a terceira geração que nascer deles poderão entrar na assembleia do Senhor”, pois, nessa geração, o lugar é revelado. Ou seja, no sagrado Atik, a cobertura da Arca era considerada como o lugar da misericórdia, e ambos eram sentidos em conjunto. Isto significa que a criação de um lugar para o trabalho revela, de imediato, uma grande medida da luz do amor, que a partir desse momento, compreenderá que prevenção de devolver uma recompensa impede a luz do amor. Por esta razão, esforça-se até encontrar a forma de retribuir a recompensa, mesmo quando se encontra num estado de plenitude, pois deve, contra a sua vontade, resolver o enigma da plenitude, e não há ninguém que seja totalmente completo. A partir daí, torna-se um ferramenta apta para o trabalho.
Podemos dizer que existe espaço para o trabalhador completo servir em outros corpos, a fim de os complementar, pois não há plenitude na Natureza, porque a Natureza exige a revelação, ou seja, a verdadeira devolução da recompensa, para que ele não dependa da visão dos outros, pois, se assim fosse, não se encontraria. Mas aquele que encontra a servidão dentro de si próprio está sempre a servir o Criador e nunca descansa. E, nessa medida, a luz do Seu amor é infinita e incessante.


Dois Pontos
Há dois pontos em cada anseio: um na ausência e outro a partir da saciedade. A diferença entre eles é que o anseio que surge do medo da ausência—mesmo que alcance os níveis mais elevados e os mais sublimes,  ainda assim, quando se cansa, contenta-se com o mínimo, alimentando-se apenas para se saciar e cobrir Atik, para que não esteja ausente. Mas o anseio que nasce do ponto da saciedade, ou seja, que não esteja carente de forma alguma sem isso, nesse momento, não se satisfaz com pouco e aspira apenas ao mais elevado em existência. Se não for nessa medida, mas sim algo mediano, não vai sentir qualquer motivação para trabalhar e esforçar-se de forma alguma.
Por exemplo: alguém com tendência a tocar música sente-se incompleto até que adquira essa capacidade. Não vai descansar até alcançar um certo nível de capacidade para tocar. Mesmo que lhe digam que jamais será um grande músico, mas apenas um mediano, ainda assim não vai desistir e vai aceitar esforçar-se para adquirir pelo menos o pouco que puder. Mas alguém que não tem tendência para a música e que não sente necessidade desse conhecimento, se um músico lhe sugerir que se dedique a essa arte, vai responder-lhe antes mesmo de ouvir a proposta completa: “Não tenho dúvida de que nunca serei grande nesta arte, e se for apenas um músico comum, será que o mundo vai sentir a minha falta?”
Na verdade, está determinado pela Sua providência sobre o homem que qualquer anseio que surja após o ponto da saciedade será apenas desejável se for a mais elevada naquele momento.
Com isto, é possível compreender um assunto profundo: apesar de as gerações estarem a declinar em valor, expandem-se na carência desejada e na correção final. Isto porque as primeiras gerações, que eram como os filhos de Adão, tinham em si próprias uma grande e terrível carência na falta do trabalho divino. Por esta razão, o seu anseio em servi-Lo nasceu do ponto da ausência. Assim, não expandiram na sua aspiração por medo de a perderem completamente e, por isso, permaneceram sossegadas e satisfeitas com o pouco que conseguiram alcançar. Por isso, os seus movimentos no trabalho eram pequenos e breves, pois, devido ao reconhecimento do grande valor, contentavam-se com pouco.
Este é o significado do declínio do mérito das gerações, até chegarmos à contracção final na nossa geração, quando a sabedoria dos autores se tornou corrompida e aqueles que temem o pecado são desprezados. Neste estado, a multidão sente-se satisfeita e não se considera obrigada ao serviço de Deus, nem sente qualquer falta na sua ausência. Mesmo aqueles que se ocupam no trabalho fazem-no meramente por hábito. Não possuem sede nem aspiração de encontrar qualquer centelha de conhecimento no seu trabalho.
E se um sábio lhes disser: “Vinde, deixem-me ensinar-lhes a sabedoria para compreenderem e ficarem instruídos na palavra de Deus”, já têm a sua resposta  pronta: “Já sei que nunca serei como Rashbi e os seus companheiros, e que as coisas permaneçam como estão; bastar-me-ia poder cumprir o literal por completo.” Porém, sobre eles foi dito: “Os pais comeram uvas verdes, e os dentes dos filhos embotaram”, pois ocupam-se na Torá e nas Mitzvot [mandamentos] de forma imatura, e os dentes dos seus filhos vão embotar por completo, perguntando-se para que necessitam deste trabalho. É para vós, e não para Ele, e vós próprios vão embotar os seus dentes. Assim é a nossa geração, com a qual lidamos.
Mas, com o que foi escrito e explicado acima, vai compreender que, nesta fornalha, podemos ter grande esperança, pois daqui em diante, cada erudito cujo coração anseia pelo trabalho do Criador já não estará entre aqueles que se contentam com pouco, pois o ponto da sua aspiração não nasce da ausência, mas sim da plenitude. Por esta razão, todo aquele que se aproxima da Torá e das Mitzvot não se vai contentar com menos do que ser o primeiro da geração, ou seja, alcançar um verdadeiro conhecimento do seu Criador. Não vai desejar desperdiçar as suas forças no trabalho do povo comum, mas apenas no mais elevado, uma proximidade genuína ao Criador e a certeza, no seu entendimento, de que o Criador o escolheu.
De facto, na nossa geração não encontramos verdadeiros servidores, excepto aqueles escolhidos que já foram agraciados com uma alma divina, uma centelha do próprio Criador. Como escreveu o poeta: "O meu joelho é puro, estendendo-se das nascentes da cisterna / O nome d'Aquele que te escolhe, para caminhares diante d'Ele / …Tu estás diante d’Ele como todos os que se colocam perante Ele / que se aproximam do Senhor. O meu joelho, tu conheces a vontade dos que são semelhantes / O nome do conhecimento dos teus propósitos, e a retribuição momentânea."
Mas aqueles que não alcançaram este mérito honrado e sublime não têm qualquer amor ou temor no trabalho. Isto não acontecia nas gerações anteriores, pois os servos do Criador não aspiravam a um nível tão elevado, e cada um servia o Criador conforme a sua compreensão.
Com isto é possível compreender que a correcção começou, de facto, antes da recepção da Torá, na geração do deserto. Por esta razão houve um grande despertar nessa geração: “O nosso desejo é ver o nosso Rei”, como está escrito na Midrash. Contudo, então pecaram, ou seja, contentaram-se com um mensageiro, dizendo: “Fala tu connosco e vamos ouvir, e que Deus não nos fale, para que não morramos.”
Este é o significado das Tábuas se terem partido e de todos os exílios. Mas na geração do Messias, este assunto será corrigido, pois esse despertar vai regressar, e quando O alcançarem, já não vão pecar, pois já sofreram em dobro por todos os seus pecados.
O objectivo desejado não é outro senão o mais elevado de todos. Este é o significado de: “E já não vão ensinar cada um ao seu próximo e cada um ao seu irmão, dizendo: ‘Conhece o Senhor’, pois todos Me vão conhecer, desde o menor deles até ao maior.” Esta será a primeira condição para todos os que iniciam o trabalho.
As minhas palavras não se dirigem àqueles que se contentam em trabalhar e esforçar-se para beneficiar as pessoas, e muito menos para satisfazer os seus desejos desprezíveis. Pelo contrário, são para aqueles que sentem que não vale a pena esforçar-se pelas pessoas, mas apenas para o Criador.
E isto acontece porque há muitas fações no dia do julgamento: 1) para satisfazer paixões materiais, 2) para beneficiar os outros, 3) para aperfeiçoar o seu próprio conhecimento ou o de terceiros. Mas todas estas são forças de ocultação da Face, pois, evidentemente, não são nada em comparação com o mérito do Criador.

Alcançar uma Coisa Verdadeira
Existe uma substância espiritual sobre a qual as letras da oração estão gravadas. Essa substância é como o mais branco dos pergaminhos. Também é chamada de “fogo branco”, o que significa que é como se essa brancura viesse do fogo e se transformasse em fogo, esmagando e permanecendo com toda a sua força.
As letras são faíscas de temor e amor. Ou seja, a carência de temor e amor torna-se evidente e é sentida. Este é o significado do fogo negro, pois essa cor parece ser a mais carente e afundada entre todas. Por essa razão, desde o princípio, essa era a visão.
Inicialmente, via-se o pergaminho branco, suficientemente processado com força e brancura. Este é o significado da revelação da coroa e do seu brilho em Assiya. O significado de Assiya é o pergaminho, como na expressão: “E o prepúcio, ela não vai tomar emprestado da sua vizinha”, referente àquele que “foi unido”. A revelação da coroa é o amor verdadeiro e revelado, até Duchra [masculino] de Arich Anpin, e o estilhaçar são as letras do temor. Compreende que isto é verdadeiramente o livro do céu.
Deve saber que é verdadeiro em todos os ângulos. Por essa razão, um homem não vai alcançar verdadeiramente algo pelo qual não sinta carência ou uma deficiência real. Assim, qualquer realização que venha como mero acréscimo não é considerada uma verdadeira realização, pois a pessoa não é carente sem isso. Daqui resulta que há falsidade no trabalho, no esforço, como se fosse por algo de que ele realmente necessitasse.
É por isso que os ensinamentos externos são uma sabedoria falsa. Ou seja, o trabalho para os alcançar deve ser sob uma condição completa, como se fosse por algo de que ele realmente necessitasse e encontrasse. Mas quando a encontra e obtém, percebe que, na verdade, não sentia falta disso. Assim, é mentira e falsidade.
Não é assim com a sabedoria de servir o Criador. Pelo contrário, ele não sabe sequer como sentir a sua ausência na sua forma verdadeira. Apenas quando a encontra percebe o quão carente estava sem ela. Por isso, é uma verdadeira realização em todos os ângulos.
É semelhante a alguém que paga por um objecto o dobro do seu valor. Ele suspira porque o seu amigo o enganou, e essa compra é falsa e fraudulenta, pois a imaginação iludiu-o.
Mas quanto às intenções, não é o médico que deve ser questionado, mas sim o paciente, pois é ele quem necessita de Kedusha [santidade] e pureza no trabalho do Criador, a fim de se preparar para que as intenções sejam uma preparação da sua alma para a incorporação da Kedusha.
Além disso, não precisamos de perguntar se a Torá é boa, ou se a moral é boa, ou se “em todos os teus caminhos O vais conhecer”, pois o médico pode perguntar ao paciente sobre tudo isso. Se ele não sente dor, então está certo da sua cura, e assim, o paciente é quem sabe. Este é o significado do que está escrito no Zohar: “Um homem não deve olhar para onde não se deve olhar”, o que significa que olhar não lhe faz sentir Kedusha e pureza.


Aceitar os Nossos Sábios como Testemunhas Fidedignas
Há dois tipos de servidão: uma para a luz e outra para os Kelim [vasos], pois é impossível falar ou compreender níveis nas luzes, muito menos dizer que alguém será recompensado com alguma luz, pois não existe tal coisa como uma parte na espiritualidade, e “um voto que tenha sido ligeiramente quebrado está completamente quebrado.”
(Admiro o intelecto operante e o ministro do mundo juntos. Um dá o poder de gerar nascimento numa semente de adultério num adúltero, e outro concede edifícios majestosos sobre fundações falsas e fictícias.) Refiro-me a Aristóteles, que ordenou que ele fosse glorificado pela sua ascensão ao céu devido à invenção de uma fundação falsa que serviu como alvo para as flechas da sua mente tacanha e para o esgotamento de todo o seu espírito. Isto aconteceu porque ele viu nos livros de Israel uma sabedoria profunda, construída sobre os fundamentos dos cabalistas, e comparou-se a eles como um mero imitador, pretendendo que o seu mérito fosse igual ao deles, mentindo sobre si próprio. Se a profecia fosse verdadeira, ele estaria pronto para ela.
Mas o nosso caminho não é o dele, e um cabalista não deixa uma fundação falsa, como ele deixou as suas fundações. Pelo contrário, ainda que os nossos sábios e os seus ensinamentos nos tenham transmitido a Cabala, eles são apenas testemunhas fiéis, testemunhas oculares, e nada mais. Em vez disso, ensinam-nos o caminho pelo qual foram agraciados por serem testemunhas oculares. Quando compreendermos, a nossa sabedoria será como a deles, e alcançaremos uma fundação verdadeira e real, sobre a qual se vai erguer um edifício glorioso e eterno.
A razão desta conduta é que em todas as coisas, existe uma primeira substância e um primeiro conceito. No que diz respeito aos conceitos mundanos, que estão ocultos e imersos em descrições materiais, nós alcançamo-los removendo a forma, ou seja, passando do primeiro conceito para o segundo, e assim sucessivamente, até alcançar o conceito desejado. Por esta razão, o primeiro conceito é obtido com grande facilidade, como uma pequena parte do todo.
No entanto, com o que vem dos céus não é assim. Pelo contrário, o primeiro conceito é o mais difícil de alcançar. É chamado de Nefesh de Assiya, e quando alcançamos a forma de Nefesh de Assiya através da Cabala, pois a realização do que está no Alto é negada ao insensato, mas através da Cabala torna-se possível. Através dela, aprendemos a sabedoria dos céus e, então, teremos o direito de alcançar a fundação recebida, conforme a natureza daquilo que é alcançado, e será possível reconciliar o que foi recebido como natural com todos os conceitos.
Porém, a fundação fictícia da sua sabedoria fictícia não pode ser alcançada, pois “basta que venha do julgamento para ser como o julgado.” Assim, todo o edifício permanece como uma construção falsa de eterna desgraça.


A Alma do Prosélito
A dor sentida por um órgão que foi amputado ocorre no momento do julgamento, ou seja, no momento da separação. Porém, depois disso, toda a dor e carência permanecem no corpo inteiro. Da mesma forma, o órgão sente prazer quando é reintegrado no corpo, mas, posteriormente, esse prazer abandona-o como se tivesse morrido e regressa ao resto do corpo. Isto explica o versículo: “E essa alma será cortada do seu povo”, indicando que toda a dor e carência pertencem apenas ao público geral, como se tivesse sido cortado do povo.
Da mesma forma, o prazer da alma do prosélito ocorre apenas quando este se liga à totalidade da nação, à mais nobre da espécie. Mas quando se liga à plenitude, o prazer pessoal regressa ao todo.
Isto alude ao dito popular: “Um ancião e uma criança são iguais”, o que significa que aquele que se inicia na sabedoria é igual a quem nela se completa, salvo o preenchimento da sabedoria, que serve o seu rei e não a si próprio. Mas toda a questão reside no entretanto, pois enquanto isso, é um trabalho do intelecto, inteiramente para si próprio e para a sua própria completude.
Por exemplo, os servos do rei e os seus ministros ilustres do rei servem todos o rei. Porém, não é assim quando aprendem para a sua própria completude: nesse caso, trabalham para si próprios, como uma casa cheia de textos de sabedoria e cânticos de louvor. Mas quando eles caem nas mãos dos profanos, estes apenas se vangloriam com a matéria superficial que está revelada no papel e utilizam-na para os seus propósitos vis... assim, perdem uma qualidade preciosa para si próprios e para todo o mundo devido à sua mundanidade, provocando desprezo e ira.
A dor no coração é ainda maior quando os sábios veem, com os seus próprios olhos, os impuros a entrarem nas casas da sabedoria de Israel e a extraírem delas apenas a sua superficialidade—ou seja, a beleza das palavras—para a obra das suas mãos: alegorias vãs e enganosas.
As ordens da sabedoria estão estabelecidas sobre os fundamentos da verdadeira Cabala, alcançada pelos conhecedores. A forma da sabedoria é despojada para se tornar obra de um artífice (e, na minha opinião, não fosse este espelho, eles não teriam ousado fabricar fundações a partir dos seus próprios corações), construindo artifícios sobre fundações de falsidade e desolação, como fizeram Aristóteles e os seus seguidores no céu, e como… fazem na materialidade. Ainda mais grave é quando aqueles que chegam com imundície revelada fazem de si próprios alvos das suas próprias setas de estupidez, vangloriando-se perante outros tão insensatos quanto eles próprios. Eles não podem ser perdoados.
Isto é um exemplo evidente: nenhum defeito no mundo se estabelece na materialidade de todo. Pelo contrário, toda a carência e toda a plenitude estão impressas na espiritualidade. Ou seja, no início da plenitude que será retratada no mundo, não será necessário alterar nenhum acontecimento material, mas apenas abençoar o espiritual. Por exemplo, vemos que um homem assume grandes esforços e enfrenta perigos ao longo do caminho para obter riqueza, mesmo correndo grandes riscos. Então, contra a sua própria vontade, o poder da imaginação, proveniente da esperança da fortuna, subjuga-o e transforma o mal num grande benefício, até ao ponto de que, com cada parte da sua alma, ele se coloca em perigo por uma preparação incerta.
Por isso, não está de modo algum distante se o Criador se aproximar, isto é, a recompensa pelo esforço, tanto quanto lhe for possível. Assim, ele não vai sentir qualquer sofrimento ou dor no esforço.


Três Facções
A Torá é como um mundo inteiro, do qual três fações desfrutam de diferentes formas. A primeira facção é a das massas. Estas não estão preparadas para abstrair qualquer forma, a menos que não desejem nenhuma forma além da primeira substância, de tudo o que preenche o mundo e chega diretamente aos sentidos e à imaginação.
A segunda forma é composta por aqueles que estão preparados para abstrair a forma material e apreender e desfrutar de uma outra forma, próxima da espiritualidade, que se encontra abaixo dela. Trata-se de um deleite intelectual e emocional, isto é, proveniente de conceitos separados que estão impressos nestas imagens materiais.
A terceira forma, à terceira facção é aquela que foi preparada para adquirir formas gerais a partir de conceitos separados, impressos tanto nas formas espirituais como nas corpóreas. Estes ligam fio a fio, e, puxando ponto a ponto, descem às profundezas e elevam-se aos céus. Esta forma só pode ser alcançada depois de abstraída a segunda forma mencionada anteriormente.
De modo semelhante, três formas de completude advêm da Torá para as três facções acima mencionadas. A primeira facção completa-se com a primeira substância. A segunda fação é completada com a forma. E a terceira fação, é completada com a inclusão, que consiste em abstrair uma forma de outra forma, e um fio de outro fio. Com certeza, aquele que não favorece as pessoas mais do que a substância não será completado pela Torá para além da medida da sua vontade e das suas próprias realizações. É precisamente isto que Maimónides quis dizer ao afirmar que se deve aprender lógica antes da sabedoria da verdade.
Contudo, a experiência ensina-nos e mostra-nos que há uma influência indireta e um poder na luz que contém, capaz de elevar repentinamente alguém da primeira fação até ao nível de um homem da terceira fação. Acontece que trabalha para obter uma agulha e, no fim, encontra uma casa repleta de prata e ouro.


Este Mundo e o Mundo Vindouro
Não há diferença entre este mundo e o mundo vindouro, exceto que um é transitório e o outro é eterno. No entanto, tanto neste mundo como no mundo vindouro, não há qualquer posse que não seja uma realidade espiritual separada. Claro que a medida que alguém adquiriu deste tipo no temporário vai permanecer sua no eterno. Esta é a visão dos completos, e Maimónides também o admite.
Porém, isto não pode ser revelado às massas, pois estas não ouviriam nem prestariam atenção à necessidade de abandonar a pequena porção que entregaram à sua imaginação grosseira.
É semelhante a um artesão cujo ouvido não é afetado por qualquer som comum do mundo, mas apenas por um grande ruído. Mas se todos os músicos e cantores se juntassem, não lhe proporcionariam senão um som áspero e ruidoso, especificamente desagradável.
Do mesmo modo, é impossível falar às massas sobre qualquer coisa espiritual, exceto através de um clamor caótico. As palavras de razão não lhes serão de auxílio, pois as suas almas não estão preparadas para desfrutar de formas que transcendem o materialismo. Por esta razão, elas aderem apenas à primeira imagem da criação que lhes está próxima, sendo esta a espessura da corporeidade. Consequentemente, até mesmo as palavras sobre o mundo vindouro devem ser expressas segundo a forma que lhes é acessível.
Portanto, é proibido falar-lhes da forma intelectual contida na substância do eterno, pois a substância quebrar-se-ia, não alcançariam essa forma e ficariam privados de ambas. Por este motivo, vou escrever para elas uma composição especial, que ofereça uma descrição geral próxima da verdade sobre a forma do Jardim do Éden e do Inferno. Posteriormente, poderei então falar sobre a permanência da alma aos mais aptos entre eles.
Sinteticamente falando, devemos saber que a forma deste mundo é uma forma separada e espiritual, e não densa nem grosseira, exceto aos olhos dos materiais, mas não na forma do Criador. Por esta razão, ele encontra todas essas formas dentro de si.
Conclui-se que, no fim da correção, será precisamente a matéria grosseira que vai desaparecer, e as formas separadas destas imagens, tanto da realidade como da ordem da existência da realidade, tais como comer e beber, vão permanecer todas na eternidade, pois nada se perde exceto as matérias e as suas fundações.
No entanto, nas formas não há perda. Elas não vão sofrer de forma alguma com a destruição da sua matéria inicial, que já cumpriu o seu papel. E se for alguém de verdadeira forma, vai compreender facilmente como separar as formas das matérias impuras do mundo, como o adultério, a gula e o amor-próprio, pois estas formas vão permanecer na espiritualidade sob a forma de um intelecto separado.
Estas permanecerão em dois discernimentos: o primeiro diz respeito a toda a forma orientada para a consideração pessoal; o segundo discernimento refere-se a toda a forma orientada para uma consideração geral.
Estas formas são para sempre chamadas de "carcaças dos ímpios", conforme está escrito: "E vão sair e ver os cadáveres dos homens que se rebelaram contra Mim." A partir disto, compreendemos facilmente as formas de santidade. Este é o significado da recompensa e do castigo, e é sentido pelo indivíduo também neste mundo.
Após a remoção da forma mencionada acima, há ainda uma abstração mais geral, chamada "o mundo da ressurreição" e "Nem o olho viu", no qual nem mesmo os profetas se ocupam, mas que cada um que compreenda recebe de um sábio cabalista.
Com isto é possível compreender as palavras: "Uma transgressão não extingue uma Mitzva [mandamento]", pois o portador leva ambas as formas para o mundo espiritual. Numa, ele deleita-se; na outra, é julgado. Este é o significado de "O Criador não nega a recompensa a nenhuma criatura".
Quanto ao que Maimónides escreveu, de que só há fé após a representação do operado na alma, desejo dizer que é por virtude do dom divino, tal como Ele discerniu na obtenção das luzes umas das outras. Isto não contradiz o que escrevi.
Aqui expliquei a completude que advém para as primeiras e segundas fações mencionadas acima. Mas quanto ao que pertence à terceira fação, apenas insinuei, sem o explicar.